Como a maratona corrida abaixo das duas horas por Eliud Kipchoge não foi uma marca oficial, este ano só se bateram dois recordes do mundo entre as 47 provas mais importantes - as que têm estatuto olímpico -, o que está dentro da média deste século, mas longe dos feitos de há 40 anos. Na altura da Guerra Fria, o doping gerou marcas "impossíveis"
Corpo do artigo
Eliud Kipchoge entusiasmou ao correr os 42,195 quilómetros em menos de duas horas (1h59m40s) e no dia seguinte Brigid Kosgei surpreendeu ao bater o recorde mundial da maratona (2h14m04s), que foi da britânica Paula Radcliff durante 16 anos. Subitamente, e em final de época, os dois fundistas quenianos colocaram o mundo inteiro a falar de recordes, embora no atletismo só tenham caído dois dos mais importantes este ano - maratona e 400 metros barreiras, ambos femininos -, o que até esteve dentro da média. Considerando apenas as provas olímpicas, que são 47, bateram-se três máximos em 2018 e nenhum em 2017; nos últimos 20 anos, e mesmo tendo surgido Usain Bolt, só caíram 28. Loucuras como as que se viveram entre 1985 e 1988 já não existem, embora sejam difíceis de esquecer: 10 dos recordes desses quatro anos continuam por bater!
Se no ciclismo se baniu Lance Armstrong e nunca se atribuíram as vitórias nas Voltas a França marcadas pela utilização de EPO, o atletismo já não foi a tempo de provar que os anos de Guerra Fria, entre Estados Unidos e o chamado Bloco de Leste, liderado pela antiga União Soviética, levaram ao uso de métodos proibidos, com um apogeu no final dos anos 80. "O desporto era mais importante nessa altura, por questões políticas, e foi uma fase em que se bateram muitos recordes", diz José Silva, treinador da Escola do Movimento e do melhor velocista nacional da atualidade, Carlos Nascimento, desconfiando: "Os recordes da velocidade feminina mundial com mais de 20 anos são recordes com doping."
A americana Florence Griffith-Joyner, recordista de 100 e 200 metros, e a alemã (de Leste) Marita Koch, que fixou o dos 400 metros, serão as apontadas, mas os exemplos não se esgotam aí. "O treino dessa altura era complementado por produtos que "potenciavam" as capacidades dos atletas", diz com ironia António Vital e Silva, treinador de lançamentos e do CD Póvoa.
Se na natação não existem recordes anteriores a 2008, no atletismo ainda há 19 do século passado, entre as 47 provas olímpicas. São mais de 40%, e 10 deles foram batidos no ciclo olímpico dos Jogos de Seul (entre 1985 e 1988), aqueles em que EUA e URSS se voltaram a defrontar após duas edições de boicotes.
"A utilização de doping, apesar de nunca ter sido confirmada e assumida, por treinadores ou atletas, é a explicação mais lógica para a longevidade de alguns dos recordes. Basta ver a quantidade de atletas que passados anos foram desclassificados por acusarem positivos que na altura não foram detetados", afirma Rui Carvalho, treinador da formação do Maia AC e ligado a saltos e lançamentos.
O nível a que foram colocadas muitas marcas leva a que só sejam batidas esporadicamente, mas o doping não explica tudo. "Há atletas excecionais, que em determinado momento conseguem resultados excecionais", lembra Vital e Silva, enquanto Rui Carvalho recorda que "antigamente os jovens brincavam mais e havia menos ofertas de desportos", o que permitia captar mais e melhores atletas. Jonathan Edwards, Mike Powell ou Javier Sotomayor serão alguns bons exemplos, mas a qualidade de talentos raros também explica a maioria dos recordes nacionais mais antigos. "Tivemos atletas excecionais", elogia José Silva.
Portugal e os talentos inigualáveis
Em Portugal, só 13 recordes nacionais de provas olímpicas têm mais de 20 anos e para explicar a sua duração basta citar nomes: Rosa Mota, Fernanda Ribeiro, Carla Sacramento, Teresa Machado, António Pinto e Carlos Calado foram dos melhores atletas nacionais, a maioria deles atingindo o topo a nível mundial. "No nosso fundo havia capacidade de sacrifício, na velocidade e provas técnicas grandes talentos", afirma o treinador José Silva. Encontrar quem os supere não será fácil e dentro de uns anos a lista provavelmente engrossará com os máximos de Francis Obikwelu, batidos em 2004 (9,86 segundos nos 100 metros) e 2006 (20,01s nos 200 m). David Lima, aquele que até agora ficou mais próximo, ainda tem de recuperar cerca de dois metros em ambas as distâncias, dada a diferença de 19 centésimas nos 100 metros e 29 centésimas nos 200.
RECORDES DO SÉCULO
Marcas dos saltos serão as mais ameaçadas
Se este ano foram Brigid Kosgei (maratona) e Dalilah Muhammad (400 barreiras) a bater recordes importantes, quais serão os próximos a cair? "O da altura feminina, com a ucraniana Yaroslava Mahuchikh [foto], ainda júnior e que bateu o recorde sub-20 em Doha", diz de pronto Rui Carvalho. Para Vital e Silva, "os do triplo salto, masculino e feminino, e o do lançamento do peso masculino" são os mais ameaçados. José Silva concorda, pelo que as marcas dos saltadores Jonathan Edwards e Inessa Kravets e o lançamento de Randy Barnes poderão cair a breve/médio prazo. A nível nacional, os três treinadores são menos otimistas. "Não vejo nenhum, a não ser que haja mais naturalizações, até porque os dois principais clubes estão a cortar nos apoios e haverá atletas a abandonar", lamenta José Silva. Já Rui Carvalho ainda arrisca com "talvez a Irina Rodrigues no disco", enquanto Vital e Silva tem esperanças "nos recordes dos 4x400 metros, nos dois sexos".
A incógnita do sucessor de Bolt
Com 9,58 segundos nos 100 metros e 19,19s nos 200 metros, o jamaicano Usain Bolt foi considerado como estando quase 50 anos avançado no tempo. Ou seja, ainda faltarão mais 40 até aparecer quem o supere. "Isso é uma incógnita. O Bolt, quando apareceu, era uma incógnita. São atletas excecionais que aparecem em momentos excecionais. Talvez se encontre um ser humano com mais capacidade, mas terá de ser no tempo certo, com as condições certas e o treinador certo", explica José Silva, treinador do sportinguista Carlos Nascimento, que já é o quarto português mais rápido de sempre. "Nos 200 metros já estão mais próximos, nos 100 não há um resultado de ponta", diz Rui Carvalho, considerando que Christian Coleman (foto), com 9,76 segundos, poderá ter mais dificuldades para chegar aos 9,58s do que Noah Lyles, que este ano fez 19,50s nos 200 metros, de atingir os 19,19s. Ambos jovens, os dois norte-americanos são por enquanto os maiores candidatos a sucessores do maior velocista de todos os tempos.
Maratona em duas horas vai ser mesmo possível
"Tudo vai ser feito para que aconteça o mais brevemente possível. E não acho que seja só das sapatilhas", diz José Silva de uma assentada, sobre as tentativas de correr a maratona em menos de duas horas. O queniano Eliud Kipchoge (foto) fê-lo, mas a marca de 1h59m40s foi atingida fora de competição e com lebres a revezarem-se, não sendo um recorde oficial. Além disso, utilizou a última versão das sapatilhas Nike Zoom Vaporfly, que têm gerado polémica, por se considerar que o seu apoio de carbono no calcanhar é uma ajuda ilegal. "Aceito o investimento no calçado para a maratona. Leva a melhorias e não considero isso doping. Tudo na modalidade vai sendo aprimorado; os dardos sofreram mudanças, as varas também", continua o técnico da Escola do Movimento, considerando que se alguém baixar das duas horas "provavelmente será o Kipchoge". Vital e Silva concorda: "Atualmente é o atleta que tem mais condições para o fazer, mas não nos devemos esquecer da quantidade de etíopes ou quenianos que podem surgir de um momento para o outro." Rui Carvalho lembra outro fator: "Precisam juntar vários bons atletas e lebres, e numa prova em que não haja vento".