"Em vez de investirmos num bom ciclista, poupámos para fazer controlo antidoping"
José Azevedo Vila-condense voltará a ser diretor desportivo em 2020, mas fora da Katusha, na qual esteve seis anos. A O JOGO diz sair por sua opção
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José Azevedo foi manager da Katusha durante três anos, depois de outras três temporadas como diretor desportivo. A O JOGO, assume que quer voltar ao terreno e delinear estratégias para alcançar a satisfação que lhe foi faltando em 2019. A Israel Cycling Academy pegou em parte do projeto suíço, de génese russa, mas o português, que tinha a opção de renovar, prefere outras paragens.
Encerrou um capítulo na Katusha. Não houve intenção de continuar?
Depois da Volta a França, e antes da Vuelta, comuniquei que não ia continuar. Ainda não estava definido o futuro da Katusha, mas informei que precisava de outro projeto. Fiz o meu máximo e fui profissional até final do contrato. Foi decisão totalmente minha.
A prioridade é voltar à estrada, deixando as decisões difíceis?
Quando terminei a carreira de ciclista só queria ser diretor desportivo, ter contacto com os corredores. A estratégia motiva-me e nunca tive a ambição de ser manager. Depois de três anos, a Direção propôs-me essa função. Foi fácil aceitar, porque conhecia a organização. Tínhamos a ambição de fazer a Katusha crescer e ganhámos muitas coisas. Fizemos coisas muito boas. Não descarto voltar a ser manager, mas para já quero ser diretor desportivo.
Do que não vai sentir saudades?
A pior parte é decidir se renovo ou não com um ciclista. Eles são profissionais e têm família. Não é fácil, porque sabemos que os vamos deixar desempregados. Apresento argumentos lógicos, sou honesto com eles... mas não quero voltar a ter de despedir alguém.
"Há possibilidades de ficar no World Tour ou ir para o Pro Tour. Quero é ter um projeto ambicioso"
Alexander Kristoff ganhou duas clássicas Monumento (Volta a Flandres e Milão-São Remo). Foram dos seus grandes momentos?
Foram seis anos na estrutura. Vivemos momentos inesquecíveis. O Kristoff e o Joaquín Rodríguez marcaram esta equipa. Tivemos 40 vitórias em 2015 e acabámos por perder o ranking de equipas World Tour por 13 pontos para a Movistar; e só porque o Rodríguez não conseguiu competir na Lombardia.
Em 2014 e 2016, ganharam 25 vezes. Em 2015 foram 40, mas nos últimos dois anos só tiveram cinco vitórias em cada época...
Os resultados ficaram muito aquém, sem dúvida. Tínhamos corredores com capacidade para rendimento superior. Não ando a apertar as orelhas aos ciclistas, mas deveríamos ter estado a disputar mais corridas.
Ficar em segundo no Paris-Roubaix deste ano foi o mais doloroso, mesmo tendo sido o vosso maior destaque?
Queremos sempre ganhar, mas esse não foi o pior, apesar de ter custado muito. O Nils Politt lutou pelos resultados, esteve na frente, mas acabou por perder com naturalidade para o Philippe Gilbert. O Politt é um corredor de clássicas, tem grande potencial.
"Quando terminei o tempo de ciclista só queria ser diretor desportivo"
Faltou investimento nestes dois anos? A Katusha andou nos 15 milhões de euros, mas outras equipas têm agora muito mais.
Tivemos anos mais fortes em termos de orçamento, sim. Quanto aos investimentos da Ineos e da Jumbo, por exemplo, já se nota uma discrepância de resultados devido à diferença no dinheiro. Todos querem ganhar e vão subindo o valor investido. Ter vários líderes ajuda a ganhar, mas é preciso dinheiro para os ter.
E agora, a sua prioridade é ficar numa equipa World Tour?
Há possibilidades, tanto no World Tour como no Pro Continental. Quero o projeto mais ambicioso, não necessariamente por ser do principal escalão. O José Mourinho, há umas semanas, disse que preferia trabalhar numa segunda divisão a lutar para subir, do que estar numa primeira e lutar para não descer. Revejo-me nessa filosofia.
"Acredito que o ciclismo é agora uma modalidade limpa"
O doping é assunto tabu no ciclismo, mas José Azevedo respondeu com distinção, e garante rejeitar qualquer prática ilícita. E diz que, comparando com o seu tempo de ciclista, está tudo melhor: "Acredito que o ciclismo é agora uma modalidade limpa. Os atletas fazem controlos diários, têm um passaporte biológico implementado pela UCI. Há tolerância zero e essa foi a política da Katusha. Fazíamos controlo interno, registando qualquer tipo de alteração fisiológica nos atletas. Até digo mais, houve alturas em que em vez de investirmos num bom ciclista, poupámos esse valor para fazer um maior controlo", explica, dizendo o que procura na sua próxima equipa: "Gosto de correr de forma dinâmica e atrevida. Que cada ciclista cresça e que possamos ter estratégia para ganhar de várias formas e com muitos líderes."
"Rúben Guerreiro pode fazer coisas boas"
Rúben Guerreiro merece continuar no World Tour, depois de ser 17.º na Vuelta?
Exijo o máximo profissionalismo a todos os atletas. O Rúben estava a preparar-se para a Volta a França, mas teve uma queda no Dauphiné e não fazia sentido apressar a recuperação. Tinha de estar a 100% para ir ao Tour. Demos tempo para recuperar, levámo-lo a outras provas para competir, como por exemplo a Wallonie e a Volta à Polónia. Rúben trabalhou e fez as coisas bem feitas. Apesar do suporte da equipa, o trabalho tem de ser do ciclista e ele teve todo o mérito. Acho que foi um dos maiores destaques da nossa época, tal como o Politt, por exemplo.
Portugal chegou a acreditar no Rui Costa para ser voltista. Até onde pode ir o Rúben?
Neste momento, um top 5 numa Grande Volta é difícil. Foi 17.º, deu perspetivas de poder fazer coisas boas em três semanas. E não fosse uma distração [perdeu 18 minutos na 17.ª etapa] e poderia ter feito top 10. Agora o João Almeida [segundo no Giro sub-23 de 2018] é falado para esse tipo de corridas, mas seria um erro colocar pressão nele. Vai ter contacto com o World Tour pela Deceuninck-Quick Step, vai crescer e pode ter um futuro com bons resultados. Contudo, é preciso calma.
E o José Gonçalves, que dirigiu durante três anos?
Ainda não sabia para onde ele ia até ter sido confirmado pela Delko Marseille. É um corredor forte e demonstrou-o com o 14.º lugar na Volta a Itália de 2018 e ao ganhar a ZLM Tour, na Holanda, em 2017 [à frente de Primoz Roglic, atual líder mundial]. Tem de querer mais e deve melhorar a parte psicológica. Desde 2010 para cá, só em 2014 não tive ciclistas portugueses na minha equipa. Também agradeço ao Igor Makarov [proprietário da Katusha] por isso. Fico satisfeito por ajudá-los a render. Ainda assim, falta alguma abertura para o estrangeiro, um calendário diferente em Portugal que mostre essa força do ciclista português.
"Os grandes ajudam sempre a essa expansão do ciclismo"
Não quis afirmar para onde vai em 2020, mas Portugal nunca foi uma hipótese?
Não tive contacto de ninguém de Portugal. Não há possibilidade de regressar, porque não houve qualquer contacto.
E no futuro, pode voltar?
Não descarto isso, mas neste momento não consigo prever o futuro a esse ponto.
Acha que o ciclismo português está em crescimento?
Mantendo a linha que tem vindo a ter, nota-se uma evolução. Estão a surgir equipas, há mais dias de competição e a exposição aumentou na Comunicação Social. O caminho está a ser positivo. Diria que está bem e recomenda-se. Claro que faltam investimentos ao nível dos que acontecem no estrangeiro. Ainda assim, há cada vez mais ciclistas a saírem para os escalões mais fortes. Há um bom trabalho - os grandes clubes ajudaram - e mais ciclistas a saírem, agora esperemos que isso tenha continuidade.
A W52-FC Porto desceu ao Pro Continental e o Sporting abandonou o Clube de Ciclismo de Tavira. Os maiores clubes não eram fundamentais?
Os grandes ajudam sempre a essa expansão, mas é importante que haja continuidade nos projetos.
É o único diretor desportivo português no estrangeiro e foi dos mais ímpares ciclistas portugueses. Não se sente magoado por nunca ter dirigido uma equipa nacional?
Sinto. Abstraio-me de ter muita exposição pela minha forma de ser, mas não vou negar que em alguns momentos há um esquecimento. Todos gostam de ver o seu trabalho respeitado e sinto o meu mais valorizado no estrangeiro.