As últimas duas décadas trouxeram ao Afeganistão uma brisa a liberdade e direitos humanos, nomeadamente para as mulheres. Agora, garante quem conhece o regime dos talibãs, o horizonte é "medieval".
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A tomada de Cabul pelos talibãs, desde 16 de agosto, trouxe drama ao povo afegão. A instabilidade política, a insegurança e o receio do que pode mudar gerou impacto.
Milhares de pessoas procuraram esconder-se (nomeadamente mulheres), outras tentam desesperadamente conseguir uma oportunidade para sair do país, amontoando-se às portas do aeroporto da capital do Afeganistão, num caminho que, para muitos já resultou em morte.
Ainda antes disso, Farid Walizadeh deixara de conseguir contactar com familiares a amigos que tem no país. Nascido em anos divididos entre a esperança e o medo, atleta da Equipa Olímpica dos Refugiados, na modalidade de boxe, Farid, de 24 anos, falou pela última vez com familiares no país a dia 5 de agosto, quando os talibãs entraram na sua cidade, Pol e Khomri, na província de Baghlan. Não sabe o que lhes aconteceu.
"Por todo o país, as pessoas não conseguem comunicar. Os talibãs dizem que estão a tentar fazer entendimentos de paz, mentiras! Enquanto dizem isso, procuram de casa em casa quem trabalhou com a NATO, quem trabalhou com organizações internacionais. Os talibãs são os mesmos, agora estão a usar a manipulação retórica nas televisões, enquanto, antigamente matavam no meio do campo de futebol, na rua, para espetáculo de terror e medo. Estão iguais, mas fazem isso longe das câmaras. Estão a eliminar muita gente", diz o afegão que chegou a Portugal a 28 de dezembro de 2012. E o eliminar quer dizer mesmo isso que o leitor pensou: matar.
Para reforçar a ideia anterior, Farid lembra que "os talibãs, 21 anos antes, mataram todos que não eram sunitas, a maior preocupação é que vão matar-nos, violar-nos, roubar-nos". A sua voz é serena, de timbre inalterado, mas suas palavras duras, vestidas de uma realidade que olhamos com distância e, por isso, não conhecemos verdadeiramente.
Farid é um desportista. E o desporto salvou-o. Ficou sozinho, com oito anos. Sem ninguém. Sozinho, sendo o elo mais fraco, foi vítima de todos. Sozinho, percorreu distâncias, campos de refugiados, atravessou as montanhas e acabou na Turquia, onde não acabou, infelizmente, o seu calvário. Encontrou paz em Portugal e refúgio no desporto.
"No início foi uma maneira de me defender das pessoas, desde o tempo de criança, que comecei a fugir do Afeganistão. Tudo cria um grande trauma na vida - a guerra, o abandono, a violência, a fome - tira-nos a confiança, reina o medo. O desporto, agora o boxe, antes do taekwondo, foi para me defender do bullying no campo de refugiados. Encontram-se muitas pessoas, mais velhos que tu, e todos querem mandar no mais fraco. Era criança, sozinho e todos queriam bater-me. Era o elo mais fraco. Encontrei maneira para ultrapassar isso. O desporto devolveu-me a confiança e a autoestima. O desporto abre-nos uma visão muito grande, tanto no nível competitivo, como ao nível do treino. Ensina-nos a respeitar as pessoas, ajuda-nos a integrarmo-nos num país, num lugar e criar amizades novas", explicou, para depois soltar, como um raio de sol por entre as nuvens numa tempestade, o exemplo mais mundano a ocidente: "Quando não temos confiança não conseguimos uma coisa tão simples como meter uma foto no Instagram".
Farid diz que o medo e as tentativas de escapar do país são apenas o início, traçando um cenário negro para os atletas. "Com o regime talibã não vai haver desporto, quando muito o críquete, de que eles gostam, mas só entre eles. Os outros desportos vão morrer no Afeganistão. O olímpico não vai ser sequer uma ideia na cabeça do povo. O desporto vai desaparecer, tal como aconteceu nos anos 1990, quando tomaram o poder."
Para já, os desportistas estão em fuga. Zaki Anwari, um internacional afegão das equipas jovens de futebol morreu no aeroporto de Cabul, vítima de uma queda mortal quando tentava entrar num avião para fugir do país, assim que os talibãs tomaram o controlo. Nilofar Bayat, basquetebolista paralímpica afegã, e o marido, com a ajuda de dois soldados alemães, ficaram dois dias sem dormir nem comer numa área restrita do aeroporto até embarcarem num voo para a Alemanha e depois para Espanha. As suas declarações, em conferência de imprensa na sede da Comissão de Ajuda aos Refugiados (CEAR-Euskadi), corroboram a ideia de Farid de que os talibãs "não mudam e são mais perigosos do que há 20 anos". Nilofar Bayat teme pelo retrocesso do país e pela família que ainda não conseguiu sair. Ela vai continuar a praticar desporto, no Bidaideak Bilbao BSR, campeão da Liga de Honra de basquetebol adaptado da temporada passada, mas não no seu país e não está certa de que as suas companheiras tenham a mesma sorte.
"Todos conhecem os talibãs, o que fazem. Todos sabem, a comunidade nacional e internacional. [Talibãs] São extremistas que usam a religião a seu favor, com armas, não respeitam os direitos humanos. Esta situação obriga os afegãos ou a morrer lá ou a fugir. Enquanto houver talibãs não haverá paz", sentencia Farid. E para que não haja dúvidas do seu prenúncio - de morte, tal e qual cantam os GNR -, este afegão inverte os papéis e questiona: "Até quando um pai vai suportar que um talibã chegue e leve a sua filha, ou a mulher, para divertir os seus militares? Ou que mate um seu familiar?" Até quando?...
"Não podemos virar a cara. Somos humanos. Se hoje viramos a cara, e estou a falar como cidadão e não como afegão, amanhã, outro país vai ter o mesmo problema, com grupos de ideias medievais. Nos anos de 1960, 1970, as mulheres andavam de saia, havia hippies, liberdade..." Sim, o Farid continua a falar do Afeganistão.
Dupla paralímpica com final feliz
Em contraciclo com o drama que vivem muitos afegãos, a dupla formada por Hossain Rasouli e Zakia Khudadadi protagonizou uma história com final, pelo menos por agora, feliz. Depois de ter sido oficializada a ausência de ambos dos Jogos Paralímpicos de Tóquio, que arrancaram na terça-feira, uma complexa operação de resgate permitiu ao atleta e à lutadora de taekwondo chegarem à capital japonesa. Foram evacuados de Cabul, estiveram em mãos australianas, foram recuperados pela França e ontem aterraram em Tóquio. Zakia recupera, assim, o estatuto de primeira mulher afegã desde 2004 a competir nos Jogos e a primeira de sempre nos Paralímpicos.
A aniquilação dos direitos das mulheres
A pedido da FIFA e FIFPro, o Governo australiano procedeu à evacuação de 50 futebolistas femininas de nacionalidade afegã.
Sob o regime dos talibãs, interrompido há 20 anos, as mulheres não podiam frequentar a escola depois dos 10 anos, não podiam trabalhar, não podiam sair de casa sem um elemento masculino a acompanhá-las e os casamentos em tenra idade eram dominantes. A tomada de Cabul, há dias, reacendeu medos e traumas bem vivos na memória coletiva. Farid é direto: "A mulher é uma peça para eles". E isto é algo que todos os afegãos sabem.
A seleção feminina de futebol, criada em 2007 e que teve o seu primeiro jogo oficial em 2010 (contra o Bangladesh), estava, portanto a dar os primeiros passos. No entanto, as mulheres que faziam parte da equipa foram das primeiras a sentir que estavam ameaçadas. Elas representavam os direitos adquiridos nas últimas duas décadas, sem os talibãs no poder. Shabnam Mobarez, 26 anos, vive nos Estados Unidos e é a capitã da seleção de futebol feminino do Afeganistão. Está a salvo, mas sabe que as suas companheiras não estão. Ser futebolista é, simultaneamente, ser ativista dos direitos das mulheres. Tem-se desdobrado em entrevistas a dar nota do desespero que atormenta as restantes atletas. Desespero que aumenta com o aproximar de 31 de agosto, dia da saída dos militares americanos do território.
Também Khalida Popal, de 34 anos, uma das fundadoras da seleção, exilada na Dinamarca, tem procurado dar resposta aos muitos pedidos de ajuda de colegas. É uma corrida contra o tempo.
O futebol não é, infelizmente, caso único. Desde 2013 que se desenvolveu uma campanha de estímulo para desenvolver o ciclismo entre as mulheres no Afeganistão. O esforço surtiu efeito e, este ano, Masomah Ali Zada, conseguiu a qualificação para os Jogos Olímpicos de Tóquio, na equipa olímpica de refugiados. Foi a primeira ciclista feminina do Afeganistão a conseguilo. Do esforço para abrir a modalidade a mulheres, passou-se agora ao esforço para retirar todas as ciclistas do país, bem como os homens que as ajudaram a abraçar o desporto. Foi criada uma angariação de fundos internacional para conseguir a evacuação destas atletas, que estão a queimar as bicicletas, os certificados de atletas e a apagar publicações nas redes sociais na tentativa de atrasar a sua identificação por parte do regime talibã.
Mas, para além das desportistas, há mais. Todas as mulheres no Afeganistão estão em perigo. Nasir Ahmad é afegão e está refugiado em Portugal, onde concluiu o mestrado. No seu país natal tem a mãe, com problemas de mobilidade e necessidades médicas permanentes, e a irmã, 32 anos, ativista dos direitos humanos. Também ela tem um alvo nas costas e Nasir teme por elas. Com elas não está nenhum elemento masculino, o que significa que não podem sair de casa. Não têm autorização para sair à rua sem uma companhia masculina... se é que isso significa segurança. "Se não forem retiradas, elas podem não sobreviver", diz Nasir. Este é o pensamento que o tem atormentado e que há vários dias não o deixa dormir. A ele e a tantos como ele. Do Governo português, Nasir recebeu a informação de que estão a tentar retirar a sua família do Afeganistão. Até ao fecho desta edição não havia confirmação do sucesso desta missão. "É uma esperança", e é a ela que Nasir se agarra.