Ana Oliveira em entrevista a O JOGO: "O maior rival do Pichardo é o recorde mundial"
Diretora desportiva do projeto olímpico encarnado admite que existiram entraves na génese, até do próprio clube. Ainda espera que algumas federações reconheçam ao Benfica o peso olímpico e desvaloriza a rivalidade entre o triplista luso-cubano e Nelson Évora
Corpo do artigo
Quase há 15 anos a dirigir as bases do projeto olímpico do Benfica, clube que deu a Portugal três das últimas quatro medalhas nos Jogos, Ana Oliveira, 56 anos, é uma das mulheres mais relevantes do panorama desportivo nacional. Perdeu o pai há pouco mais de uma semana, mas nem isso lhe retirou o sorriso e a frontalidade, transmitindo a O JOGO a satisfação pelo projeto que hoje encabeça.
Como nasceu o projeto olímpico do Benfica?
Cheguei ao Benfica em 2004 com este projeto de inovação e sabendo ter todas as valências para encaixar num projeto a partir do zero. Estou ligada ao clube há 38 anos e, como atleta, o meu benfiquismo nunca me permitiu vestir camisolas às riscas azuis ou verdes e brancas. Consegui num local juntar as valências de treinadora, da saúde e do marketing. Salvei aqui a minha realização profissional.
É pouco comum que uma mulher tenha esta importância no desporto português. Estranhou o convite de Luís Filipe Vieira?
Não me surpreende, porque sempre vivi na alta competição. Convivi sempre com altas figuras nacionais, quase todas homens. Foi tudo natural. Fazíamos reuniões com o presidente e este tratava-me por senhora. Isso incomodava-me... Estava zangada e num desses dias e disse que não gostava de ser tratada assim. Sempre tivemos uma excelente relação, que se descongelou a partir dali. Sempre acreditou muito em nós.
Em 2008, o projeto ainda não era oficial, mas o Nelson Évora (ouro) e a Vanessa Fernandes (prata) ganharam duas medalhas olímpicas. Isso quebrou as barreiras?
Esses dois resultados foram fruto do trabalho individual e das valências do clube. Demos identidade a partir daí, com o gabinete. O clube sempre teve participações olímpicas. O olimpismo faz parte da mística do Benfica. Entre 2008 e 2012, o projeto olímpico do Benfica teve muitas resistências e chegou a ser ameaçado pelo comandante Vicente de Moura. Até dentro do clube houve barreiras.
O judo, o triatlo ou a canoagem não eram históricos no Benfica. Como contornou essa realidade?
Perguntavam-me o porquê de irmos buscar determinado atleta. "Nunca tivemos canoagem nem triatlo", diziam-me. Agora são três das modalidades com maior esperança olímpica. E sim, não eram conhecidas no Benfica, mas passaram a ser das mais queridas. Devem muito ao Benfica. Influenciámos diretamente as Seleções Nacionais e neste tempo sempre fomos o clube com mais atletas representados. Demos uma nova esperança ao jovem português.
Onde está o Benfica no mundo olímpico?
É um privilégio que um clube de futebol como o Benfica aposte tanto neste projeto. Daqui a quatro anos quero estar no nosso Centro de Treinos, em Oeiras, a dar-lhe uma nova entrevista. E era bonito que o país reconhecesse o Benfica como a maior referência olímpica em Portugal.
Contratar o Nelson Évora, um jovem promissor na altura, era uma prioridade?
Sempre tive liberdade no recrutamento e quis trazer o Nelson Évora [triplo salto], que tinha estado no Benfica desde os dez anos, do FC Porto. Ainda não tínhamos equipa e via que ele poderia ser uma das bandeiras. A Telma Monteiro [judo], a Vanessa Fernandes [triatlo] e o Nelson eram as bandeiras do projeto. Depois fomos alargando as bases. Nunca pensei que ele viesse a sair do Benfica. Achei que ia acabar aqui, mas o jogo mudou. Quem está com o Benfica, fica no Benfica para sempre. Não apagamos os atletas da nossa memória. Se o Nelson está onde está, com a idade que tem, também o deve ao Benfica.
A rivalidade entre Pichardo e Évora não pode vir a prejudicar Portugal?
A rivalidade entre atletas do mesmo clube existe todos os dias, só que algumas são mais mediáticas do que outras. A vida continua. Ninguém é insubstituível. No futebol tivemos o Eusébio, agora temos o Félix. Tivemos a sorte e a competência de trazer o Pichardo e os grandes rivais dele são o atual campeão olímpico [Christian Taylor] e o recorde do mundo que persegue no dia a dia. Acreditamos que Pichardo pode ser campeão olímpico. O ano passado foi o melhor do mundo.
Não a preocupa a imagem negativa do Pichardo?
O Nelson - e bem, com todo o mérito que teve - tem uma imagem favorecida. Já lutou e trabalhou para isso. Neste momento não há problemas entre os dois. Há questões mais graves entre atletas da Seleção. O Pichardo não é tão querido... é normal. É incomparável o que o Nelson já deu a Portugal.
E a Vanessa Fernandes é uma perda irreparável?
Tanto a Vanessa como o Nelson serão perdas difíceis de superar pela Nação quando acabarem a carreira.