Portugal estava de cabeça perdida e a chorar pelos cantos, até que passou um furacão por Belfast. Em três sopros, o capitão resgatou a equipa rumo ao Brasil, passou Eusébio na lista de goleadores e assinou o seu primeiro hat-trick pela Seleção. Jogou limitado, diz-se...
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É do futebolês que nenhum jogo se ganha ou perde fora do coletivo, essa entidade abstrata a que os treinadores se agarram quando não conseguem explicar coisas concretas. Cristiano Ronaldo, que tem passado a carreira a detonar lugares-comuns, foi ontem maior do que duas equipas inteiras, resgatando a sua de uma desgraça iminente e rebocando-a para a rota do Mundial. O capitão, num exemplo de liderança verdadeiramente épico, levou tudo à frente em Belfast: o adversário, a histórica fasquia dos 41 golos de Eusébio e o seu bloqueio para os hat-tricks por Portugal. Foi um autêntico "one-man show", demonstração a solo de um jogador a quem a expulsão de Postiga pediu que valesse por dois, mas que acabou o jogo a insinuar ser muitos mais, assinando uma das exibições individuais mais categóricas da história da Seleção. Diz-se (e quem duvida?) que atuou condicionado, mas Ronaldo não conhece limites...
Destacar a figura é resumir o jogo, mas é também empurrar para a frente um filme que chegou a ser de terror para Portugal. Não há que pôr paninhos quentes: até o capitão puxar dos galões, a equipa nacional roçou o medonho. É tentadora a ladainha de que esta Irlanda do Norte já empatara no Dragão e batera a Rússia, mas essas episódicas glórias só realçam o ridículo de uma Seleção que nem à terceira se considerou avisada. Aliás, o bizarro da questão é que Portugal até saiu na frente, como em Israel, voltando a deitar por terra uma vantagem que lhe caiu no regaço. Emocionalmente descontrolada, a equipa caiu no padrão que mais convém aos britânicos, incapaz de especular com a vantagem e forçar os erros de um onze tão desfalcado que só repetia cinco jogadores face ao encontro de há um ano.
A Seleção cedeu à tentação das bolas longas a explorar a capacidade de choque dos extremos, dando-se à dimensão física do jogo e abdicando da capacidade de gestão dos médios. Portugal limitava-se a bater na frente, mas sem a dose de agressividade que lhe permitisse contornar um adversário muito físico e que encaixou na perfeição o duelo das transições. É certo que a Irlanda do Norte marcou ao primeiro remate, mas numa fase em que do outro lado já se emitiam sinais de nervosismo e de irritabilidade, claramente agudizados com o empate e que atingiram o cúmulo com a expulsão de Postiga, ingénuo perante um McAuley provocador e um árbitro que saía à casa.
Limitado, aparentemente remetido ao estatuto de jogador normal, Ronaldo tinha agora de valer por dois, mas o intervalo só devolveu uma equipa ainda mais confinada aos seus dilemas. Sem capacidade para se chegar à frente, Portugal voltou a ser batido atrás, novamente de canto e com o árbitro a assistir de cadeirão, como a defesa nacional, a um golo que teve tanto de ingenuidade da Seleção como de irregularidade na posição de que Ward beneficiou. Nas contas para o Mundial, porém, o golo norte irlandês tornava a rota do Brasil tão enigmática que o país parecia condenado a inventar os Descobrimentos de volta.
Em desvantagem total, Paulo Bento ousou Nani em prejuízo de um médio e Nélson Oliveira em vez de Vieirinha, apostando as fichas no jogo frontal. A história deu-lhe razão - com uma mãozinha do descontrolo britânico -, mas só porque à irreverência do banco se associou o exemplo de liderança de um capitão que teve a coragem de agarrar pelos colarinhos uma equipa a definhar.
Em dois golpes de cabeça, Ronaldo rasgou um sorriso numa Seleção que já andava a chorar pelos cantos, compondo o ramalhete com a confirmação do seu primeiro hat-trick por Portugal e arrancando rumo ao recorde de Pauleta que, inevitavelmente, acabará por cair. Uma exibição lendária, sublinhada pelos tais condicionalismos físicos de um jogador que não conhece limites e que assinou uma exibição bíblica em Belfast. Dê por onde der, a mensagem a retirar do jogo de ontem é só uma: não se sabe quem acabará por levar quem, mas o lugar de Portugal e de Ronaldo não pode ser outro que não o Brasil'2014.