Vítor Baía. Há 25 anos, o FC Porto tinha um guarda-redes campeão europeu no estaleiro e um suplente incontactável. Sobrava o "teenager", que não só jogou em Guimarães (1-1) como foi o titular durante todo o campeonato, que concluiu ganhando o atual salário mínimo. Há 25 anos, nascia um mito.
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É só a meio da conversa que Vítor Baía recorda que foi "aqui" que tudo começou. "Aqui" é o Hotel Porto Palácio, antigo Sheraton, onde a 11 de setembro de 1988 preparou as luvas que Mlynarczyk lhe tinha oferecido para uma ocasião especial. Num café prolongado com O JOGO, o antigo guarda-redes percorre uma carreira com 27 títulos de azul e branco e mantém sempre o FC Porto como pano de fundo da entrevista. Até porque, garante Baía, o futuro não deixará de passar pelo Dragão.
Antes de lhe explicarmos o mote desta entrevista, estava a par da data? Já se tinha dado conta da efeméride?
Já, por acaso já. Sei de cor o dia, porque o associo ao 11 de setembro. É a coincidência entre algo marcante pela negativa e a felicidade da minha estreia, mas a associação é inevitável. Não estou a contar quantos anos são, mas a data sei-a sempre porque é um dia que marca a humanidade e que também é importante para mim, não sendo obviamente factos comparáveis.
É saudosista?
Não, vivi intensamente os meus momentos. A minha carreira foi sangue, suor e lágrimas porque amo muito o FC Porto, mas tive de me superar sempre e de sofrer muito para ganhar o que ganhei. Não esqueço as operações nem os jogos em que atuei lesionado, mas essa é a escola FC Porto. Senti-o em Barcelona, onde cheguei com espírito guerreiro e fiquei confuso com colegas meus, alguns dos quais treinadores de topo na atualidade, que com uma dor de cabeça ou de barriga já não jogavam. Isso fazia-me muita confusão, até porque eram jogadores nascidos no próprio Barcelona.
Como é que lida com as recordações?
Não estou preso ou em depressão, a reviver constantemente o que já passou, mas num momento em que não esteja tão bem, recordo-me sempre das coisas boas que vivi. Sentir o bem que fiz e a alegria que dei às pessoas preenche-me.
Sabe quem é que tem a camisola do seu primeiro jogo?
Sei, porque foi oferecida por mim. É o nosso presidente.
Porque é que lha ofereceu? A esta distância parece algo premonitório...
Ainda tinha contrato de júnior e não tenho problema nenhum em dizer que ganhava o atual salário mínimo [cerca de 100 contos na moeda antiga], o que contrastava com o ordenado médio de um plantel cheio de campeões europeus. Na semana em que fui chamado a renovar, e por minha espontânea vontade, levei a minha primeira camisola para a oferecer ao presidente.
O contexto da estreia é curioso...
Eu ia ser emprestado ao Famalicão, mas depois estive um mês internado no hospital e mais dois meses em recuperação em casa. Foi muito estranho, tive uma tromboflebite no braço direito que me entupiu a veia principal, parecia o Rambo e ninguém sabia porquê, mas o médico dos juniores, o Dr. Fernando Póvoas, reivindicou a minha não utilização num jogo contra o Benfica da fase final do campeonato e ainda bem que assim foi, porque me salvou a vida.
Voltemos ao contexto da estreia...
Sim, porque eu não fui emprestado ao Famalicão por causa desta paragem. Aliás, nessa época o Famalicão viria a descer à III Divisão. Entretanto, o Jozef [Mlynarczyk] fraturou a clavícula na véspera do jogo em Guimarães e o Zé Beto estava com um processo disciplinar, apesar de ainda o terem tentado chamar, mas ligaram para casa e a mãe não sabia dele. Acabei por ser lançado às feras, mas a minha reação foi muito natural, só tive tempo de pedir que me fossem buscar as luvas a casa, porque eram umas luvas especiais que o Jozef me tinha oferecido e que eu estava a guardar para uma ocasião especial. Vieram-mas trazer, precisamente a este hotel, que coincidência. Acho que as pessoas estavam assustadas, vi-o na cara dos meus colegas e na do treinador, o Quinito, que me avisou logo que eu ia dar muitos frangos na minha vida.
O que distingue um guarda-redes da atualidade de um que se tenha estreado há 25 anos?
Eu preferia ter crescido agora, porque tive de me adaptar a várias mudanças. Os miúdos agora trabalham o jogo com ambos os pés, são mais equilibrados, gerem melhor o um para um. Antes íamos pelo chão a rastejar, era para varrer, agora a ordem é ficar em posição. Com o talento que tinha, se tivesse aparecido nesta altura teria atingido outro nível. Na altura só ia para guarda-redes quem fosse o patinho feio da equipa e eu fui porque a posição me fascinava, aliás, até dava um jeitinho na frente.
Mais do que a estreia, o que o fez foi a longevidade. Como a explica?
Serenidade, tranquilidade... Pareço o Paulo Bento (risos). Acima de tudo, a maturidade que tinha.
E que vinha de onde?
Da educação, acho. Nunca vi os meus pais a discutir, sempre me transmitiram serenidade e eu tenho condições naturais que sempre me permitiram lidar muito bem com a pressão. Dei alguns frangos, mas quanto maior a responsabilidade, melhor eu estava. Isso preenche-me, sei que nos momentos-chave nunca falhei. Em decisões, e as pessoas podem confirmar que não é pretensiosismo, nunca falhei. Está nos números...