ZOOM - Rebeldia russa pode ser o fósforo de uma revolução financeira no futebol europeu
O financiamento indevido a equipas de topo da Rússia - Zenit, Dínamo e Lokomotiv - está a pôr em xeque as regras do fair play financeiro da UEFA. Mas o equilíbrio financeiro do mundo do futebol, à custa da resistência e da rebeldia dos grandes investidores, poderá ser o alvo de uma revolução já em curso. A relação de forças entre a FIFA, a UEFA, as ligas profissionais e os clubes está ao rubro. Fizemos um ligeiro raio-x ao atual contexto.
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Se se estabelecesse uma comparação entre os poderes da FIFA e da UEFA com os que conhecemos no mundo, à primeira instituição poderíamos chamar ONU (com mais poderes no futebol que esta no planeta) e União Europeia à segunda (com mais receita e melhor orçamento, à escala, do que a Comissão Europeia).
A FIFA e a UEFA influenciam legislação (sobre o futebol) à escala mundial e europeia, reservam datas, logística e ativos alheios (jogadores, treinadores e árbitros) em função da valorização das suas competições, extremamente valiosas no contexto económico do setor.
O último Mundial - o seu ciclo de quatro anos - terá rendido à FIFA, em receitas variadas (direitos comerciais, televisão, bilhética, merchandising, etc), cerca de 5,5 mil milhões de euros, conforme noticiou o USA Today, a 05 de junho. Ou seja, o equivalente a 2,6 por cento do Produto Interno Bruto de Portugal (PIB) em 2017 (193 MME).
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Por sua vez, e segundo a revista Forbes, noticiado em julho de 2016, a UEFA, no Europeu que Portugal conquistou nesse ano, teve receitas de quase dois mil milhões de euros. É muita pasta...
Para todos os efeitos, e sem cairmos em filosofias aturadas sobre a missão das duas instituições, até hoje, a FIFA, a UEFA e as restantes confederações continentais têm poderes na regulação do futebol profissional e são, ao mesmo tempo, parte interessadíssima na sua rentabilização.
A situação equilibrou-se um pouco quando a indústria passou a ter assento no executivo da UEFA e no seu congresso. Na bancada da governação (Comité Executivo), desde 2017, a ECA (associação dos clubes/sociedades desportivas) tem dois membros e a European Leagues (EL - associação das ligas profissionais) tem um.
Mas se a EL se bate pelo equilíbrio competitivo e económico das ligas nacionais, com o pressuposto da meritocracia desportiva, já a ECA representa os interesses económico-financeiros dos emblemas mais poderosos, com o pressuposto de que são eles que geram os talentos que fazem brilhar as seleções nacionais, ou seja, talham o "minério precioso" que municia o principal ativo da UEFA e da FIFA.
Este "simplificado" ecossistema, esta espécie de relação de forças, está a alterar (ou adulterar) os princípios do desporto-rei na Europa. E pode ser o cerne de uma revolução que ninguém quer, embora todos achem que alguma coisa é preciso mudar.
Se a revolução for decretada pelo poderio dos mais poderosos emblemas, vinga a ameaça constante de uma Superliga. Mas há uma proposta de "revolução de veludo", mais pela "ingerência" - porque pode e porque sim - da FIFA, que pretende reformular o seu Mundial de Clubes. Se o primeiro exemplo tem sido meramente usado pela ECA para posicionar melhor os emblemas dos campeonatos mais ricos na Champions (Inglaterra, Espanha, Alemanha e Itália têm quatro vagas garantidas), já o segundo faz uso do receio da própria UEFA sobre o primeiro para gerar um produto - o novo Mundial de Clubes - que distribua uma ainda inimaginável receita pela FIFA e pelas confederações de cada continente.
Esta espécie de relação de forças (...) pode ser o cerne de uma revolução que ninguém quer, embora todos achem que alguma coisa é preciso mudar
Sobre esta opção, a UEFA, que até já anunciou uma terceira competição para acolher mais equipas de segunda e terceira linhas das ligas mais pequenas (ou menos rentáveis), criou um grupo de trabalho, há poucos dias, para estudar essa proposta da FIFA, o qual inclui o português Tiago Craveiro, CEO da Federação Portuguesa de Futebol, e um dos protagonistas de maior confiança de Aleksander Ceferin, presidente do organismo europeu.
Este é o cenário visível de uma espécie de "ou vai ou racha" do futebol à escala europeia e mundial. Um cenário que tudo tem a ver com as mais recentes notícias sobre a intervenção estatal e da grande Finança russa, hoje trazidos à estampa por O JOGO e pela imprensa no geral.
Este cenário existe graças às astronómicas verbas envolvidas no futebol profissional, sejam elas provenientes das competições entre clubes ou entre seleções, sejam elas de um só continente ou à escala mundial.
O que se soube, através de mais um conjunto de documentos extraídos via Football Leaks e tratados pelo consórcio media que os investiga, é que o governo de Putin, através de empresas estatais e privadas, financiou indevidamente - fora das regras de fair play financeiro da UEFA - três emblemas russos: Zenit (São Petersburgo), Lokomotiv e Dínamo (Moscovo).
E que, devido ao "doping financeiro", esse trio deveria ter sido excluído das competições internacionais em 2013, dando lugar, por exemplo, a equipas portuguesas, país que perdeu, para a Rússia, pontos no ranking "uefeiro".
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A UEFA pondera abrir processos, mas a questão do fair play financeiro afeta outros clubes, como o Paris Saint-Germain ou o Manchester City. No caso da equipa de Pep Guardiola, há claramente quem não acredite nessa possibilidade: o redator sénior da EPSN, Gabriele Marcotti, que considera "difícil ver como o City pode ser mais sancionado", depois do acordo a que chegou com a UEFA para cumprir o fair play financeiro de 2014.
"Reabrir o caso seria um duplo risco. Depende da vontade política da UEFA e das partes interessadas (lideradas pelos superclubes europeus): se não havia vontade na altura, também não haverá agora", resume.
E esse é o problema: tal como no restante mundo socioeconómico, o investimento privado não gosta muito da regulação ou da intervenção das tutelas. O problema é que as tutelas, como em tudo na vida, são geridas por homens. E estes, para estarem no topo, precisam de duas coisas: resultados económicos de sucesso e recompensas salariais correspondentes aos sucessos apresentados.
Que é como quem diz, a gestão precisa do dinheiro dos que investem. E quem investe nas sociedades que gerem os maiores emblemas do mundo são gigantescas empresas transnacionais (do petróleo árabe ao gás russo, dos capitais de risco norte-americanos aos fundos instalados em paraísos fiscais), e não sentem a mesma afinidade territorial ou paixão clubística de um qualquer adepto.
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Como vem hoje escrito no jornal francês Le Monde, a propósito das questões que envolvem o clube Paris Saint-Germain, "o futebol está em estado de negação". Para o jornalista Jerôme Latta, "embora o PSG seja apanhado, tal como o seu Estado proprietário [o Catar], em vastas lutas geopolíticas, os seus aficionados não revelam fundamento quando se dizem vítimas de perseguição: os acordos com a UEFA a propósito do fair play financeiro ou a sua presença no projeto da superliga atesta isso mesmo". São palavras duras, numa peça onde o redator ataca diretamente comentadores e jornalistas que sustentam a mesma tese de perseguição.
Nota relevante sobre este assunto é, também, a entrevista que o internacional belga Eden Hazard (Chelsea) concede ao diário online Sporza, do seu país, em que refere ser "fundamental recuperar a ordem no futebol, não só na Bélgica, mas em todo o mundo".
Para ele, o "Footgate" em curso, até no seu país, "não é apenas um problema que envolve os agentes dos jogadores, é um problema do futebol em geral". "Pode dizer-se que este é um mundo que onde há muito dinheiro e que há muita gente que não pensa como nós. Pessoalmente, não tenho capacidades para mudar o mundo do futebol, mas há gente melhor posicionada para o fazer", conclui o futebolista.