River-Boca em Madrid, no Santiago Bernabéu. O Real andou mais depressa que a Espanha. A CONMEBOL fez despertar antigos fantasmas da nação Argentina. E uma capa - do diário Olé - diz isso tudo e muito mais. As memórias dos Libertadores das guerras hispano-americanas são trazidas à discussão. O dia 9 de dezembro não será um domingo qualquer.
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O nome da Taça dos Libertadores da América (no original, Copa Libertadores de América) teve uma pretensão política e civilizacional, quando foi criada em 1960, a exemplo das práticas europeias de competições entre clubes num só continente, sob a égide da CONMEBOL, a confederação de futebol sul-americana: homenagear os que - "Libertadores" - lutaram contra as colonizações (espanholas, portuguesas, italianas, americanas...) do subcontinente americano.
Pois bem, já não bastava toda a bronca resultante do ataque dos adeptos do River Plate ao autocarro do Boca Juniors, no sábado passado, como agora se discute apaixonadamente a escolha, pela CONMEBOL, de Madrid para ser palco do Superclássico argentino River-Boca, para uma finalíssima a ferro e fogo, com adeptos de ambos os clubes, a mesma que, na sua génese, iria ser disputada a duas mãos, cada uma delas apenas com adeptos dos anfitriões. E uma até já foi, o que levanta questões de equilíbrio competitivo e desportivo.
Madrid, o clube, rejubila. O Governo deu a bênção e Madrid, a cidade, dá os primeiros sinais de apreensão. A Imprensa sul-americana, com a argentina à cabeça, torce o nariz à simbologia desta forçada travessia do Atlântico e até já há quem lhe chame "Copa dos Conquistadores" ou "Copa dos Saqueadores", numa clara alusão ao retrocesso histórico e contradição com a simbologia do nome da prova. A capa de hoje do diário "Olé" é sintomática: "Final em Madrid: JODER!" Em maiúsculas, uma expressão de espanto contrariado, que podem traduzir por "CHIÇA!" ou "CARALHO!", conforme a geografia sul ou norte de Portugal.
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Nunca os adeptos de futebol e consumidores de noticiário europeus terão dado tanta importância à final da Taça dos Libertadores - a liga dos campeões sul-americana - como a que estão a dar este ano. O que poderá ter pesado nesta decisão da CONMBOL em decidir, de forma ousada (para uns) ou extemporânea (para outros), que o jogo entre os arquirrivais Boca Juniores e River Plate se realize em Madrid, no Santiago Bernabéu, a 9 de dezembro.
Os antecedentes de tal decisão são sobejamente conhecidos e assim resumidos: sábado passado, horas antes da partida da segunda mão (a primeira, na casa do Boca, terminou 2-2), o autocarro dos visitantes foi bombardeado por adeptos do River Plate. Por razões de segurança há muito instituídas, as partidas em La Bombonera e no Monumental (palco dos incidentes) são de portas abertas exclusivamente aos adeptos dos anfitriões. A chamada medida de torcida única, para evitar confrontos entre claques nas cercanias ou nos estádios em dias de jogo.
Ora, em Madrid, independentemente das justificações das decisões da CONMEBOL, os adeptos dos dois emblemas vão poder assistir ao encontro. Bem, ainda se discute, com formalidades jurídicas de ambas as barricadas, a própria realização do mesmo: o Boca acha-se com direito ao título com argumentos regulamentares e jurídicos (e um recurso ao TAS - Tribunal Arbitral Desportivo -, embora sem caráter suspensivo), o River acha que deve jogar na sua casa, conforme estava previsto.
Mas em Buenos Aires e em Madrid já se discutem questões relacionadas com a segurança pública, prevenindo eventuais confrontos de duas claques que sempre que se cruzam na Argentina há sangue e prejuízos materiais. Os meios de comunicação social argentinos questionam a opção e consideram ter havido destrato e menosprezo pelas capacidades de organização das autoridades de segurança do país. Somam-se notícias e comentários, onde brechas de segurança anteriores em organizações madridistas são reveladas, como a que pode ver no tweet já abaixo: um exemplo de uma chegada do Barcelona ao Bernabéu, entendida como qualquer outra chegada de visitantes.
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Tanto quanto se sabe até ao momento, tudo se decidiu após um telefonema entre o presidente da CONMEBOL, o paraguaio Alejandro Dominguez, e o presidente do Real Madrid, Florentino Péres. E que este, segundo relatos da Imprensa, nomeadamente do diário espanhol Marca, demorou apenas dois minutos a disponibilizar o recinto do Real Madrid, emblema que até já faz gala, nas redes sociais, do estatuto de anfitrião de mais um enorme momento do futebol mundial. Só mais tarde, Pedro Sanchez, primeiro-ministro espanhol, "tweetou" o seu beneplácito.
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A "caneta" do cronista Juanma Rodríguez, da Marca, justifica o porquê de o Real aceitar esta flamejante final e ter vetado outra - a Taça do Rei - que envolvia o Barcelona. Escreve o próprio que assim é porque "O Real Madrid é proprietário do seu campo, com direito de admissão", com os adeptos dos River e do Boca "não se corre o risco de que o hino de Espanha seja assobiado ou se insulte o Rei Felipe VI, o que pode acontecer com os aficionados do Barça" e porque "o Real Madrid passeia a bandeira de Espanha pelo Mundo e não voltará a emprestar o seu campo a nenhum demónio independentista".
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Por outro lado, o Mundo Deportivo, mais afeto ao Barcelona, de imediato recordou o episódio de 2012, quando os dirigentes do Real justificaram obras nuns quartos de banho para não se jogar essa final entre os catalães e os bascos do Athletic de Bilbao. Dois emblemas de duas regiões contestatárias da coroa espanhola.
Bem, há 200 anos, o periodista de Madrid era capaz de negar o mesmo estádio às mesmas equipas que agora "concede", ou seja, aos insurrectos independentistas sul-americanos. Basta olhar à História para nos recordarmos que os argentinos de então estavam sob domínio da coroa de Espanha, o que só terminou a 9 de julho de 1816, dia da declaração de independência da Argentina.
Os Media discutem prós e contras. E alertam para o facto de haver em Espanha uma comunidade de cerca de 250 mil argentinos. Reza-se para que, pelo menos entre estes, não haja aficionados "ultra" das duas equipas.
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Por fim, fica-se com a sensação de que o Real Madrid terá sido mais rápido a oferecer as suas instalações do que a "perguntar" à cidade se estava na disposição de receber uns milhares de turistas de risco nesse domingo de dezembro, com o único intuito de torcer pelo Boca ou pelo River. Não será, de certeza, um qualquer domingo no Paseo de La Castellana.
Por falar em "Um Domingo Qualquer", filme de Oliver Stone em cenário de futebol americano: antecipando o desgosto que corre nas gargantas dos argentinos, aposto que seria mais fácil aos norte-americanos digerir uma final do SuperBowl em Londres do que aos sul-americanos uma final da Libertadores em Madrid.
É que entre os primeiros, metade já está em paz com o passado e a outra metade nem sabe o que é a Europa... Ou seja, se a motivação financeira e de promoção do futebol sul-americano estava na cogitação da CONMEBOL, a escolha parece extemporânea entre povos que ainda não pacificaram o seu passado nas diplomacias mais ou menos visíveis do presente. Paga o justo pelo pecador? Fica a dica para verem ou reverem o filme. É sobre dirigentes/proprietários desportivos, a sua relação com as equipas, a glória e a decadência. Nem que não seja, pelo discurso de Al Pacino, no final.
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NOTA: O ZOOM é um artigo habitualmente exclusivo dos assinantes PREMIUM de O JOGO.