Um português de sucesso em Andorra: "De dia entregava peças, à noite fazia campeões"
Aos 32 anos, venceu a segunda divisão de Andorra com o FC Ordino em época desgastante, como trabalhador-treinador, numa equipa em que ninguém vive só do futebol.
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Após breve carreira como jogador, que com rebeldia e imaturidade abandonou muito cedo, Ricardo Soares dedicou-se aos estudos e ganhou paixão pelo treino e a pedagogia, voltando ao futebol ainda jovem, mas para enveredar pela área técnica.
Passou por escalões de formação, por funções de preparador-físico, assistente, observador e analista, até que, no Trofense, foi seduzido por Quim Berto para o acompanhar rumo ao semi-profissionalismo da liga de Andorra.
Com vontade de aprender e de encarar novos desafios, Ricardo Soares aceitou e ao terceiro ano assumiu pela primeira vez o comando técnico de uma equipa, conquistando a segunda divisão do principado à frente do FC Ordino... enquanto trabalhava de dia como distribuidor de peças de automóveis. A dura realidade do amadorismo no escalão obrigou-o a ser criativo, resiliente e adaptável, além de uma espécie de psicólogo de um grupo de trabalhadores-jogadores. Aponta à continuidade no emblema, agora no principal escalão, mas quer dar o salto ao profissionalismo e um dia voltar a Portugal. Não tem o mediatismo de José Mourinho, Jorge Jesus ou Abel Ferreira, mas também ganha títulos lá fora.
Com carreira breve de jogador, já é treinador campeão aos 32 anos. Conte-nos o seu percurso...
-Comecei cedo a jogar no Vila Chã, depois passei pelos juniores do Rio Ave. Mas nessa fase dei pouco, ia para os distritais e ficava chateado. Até faltava aos treinos para mostrar desagrado. Tive pensamento infantil. Percebi cedo que não ia chegar lá... Mas com o gosto pelo futebol e a pedagogia fui tirar o curso de educação física e depois o mestrado na vertente de futebol. Comecei no Varzim a ganhar o gosto pelo treino, pela competição, a ter o formigueiro na barriga. Passei pelo Vizela, pelo Rio Ave e fui para os sub-14 do Trofense. Quando entrou o Nuno Valente na equipa principal, subi, fiquei como preparador físico e continuei com o Quim Berto, que me entusiasmou, mais tarde, a ir com ele para o Lusitanos, de Andorra. Estive noutros clubes de Andorra até que senti a necessidade de me desafiar, ser adjunto estava a ser curto, não me preenchia. Tinha sentido crítico e capacidade para ser treinador principal e aceitei o convite do Ordino.
Isso na segunda divisão de Andorra e num país com poucas infraestruturas e cultura desportiva, não é assim?
-A liga tem 26 anos e isso reflete-se em pouca cultura desportiva. O futebol nem é um desporto de referência. Foi um ano muito difícil, não tinha nenhum jogador profissional de futebol, tinham outras profissões durante o dia. Apesar de não se dedicarem exclusivamente ao futebol, sempre foram imensamente competitivos em todos os treinos e ideias que foram propostas. Por isso terminamos em primeiro. Iam treinar com oito ou dez horas de trabalho antes, não é fácil estarem concentrados ou exigir. Tive de ser elástico, ter dinamismo, sensibilidade para chegar a eles, encontrar o equilíbrio. E creio que tive sucesso nessa liderança, não foi autoritária, tão pouco amigável, foi sensível. Quanto a infraestruturas, é complicado. Mas foi um desafio novo e agarrei-o com unhas e dentes. E adaptei-me. Aqui há muitos portugueses e por exemplo no Lusitanos nunca usei espanhol ou "catalá". Mas tenho muito respeito pela cultura, como imigrante, e estou a aprender, já me defendo.
Os jogadores não se dedicavam em exclusivo ao futebol, e você?
-Eu defendo a máxima "pensar, planear, adaptar e voltar a pensar". É um circuito. Tive de me adaptar, e como o clube é da segunda e não é profissional, tenho também o meu emprego. Sou distribuidor de material de automóveis. Por isso foi uma época muito desgastante. O jogador tem o botão "off", mas o treinador não, está continuamente ligado. Estou com um pé no futebol e vou meter os dois. Foi o que escolhi. Íamos treinar à noite, contava com 20 jogadores mas a qualquer momento podia faltar um. Tive de me adaptar. Estivemos a época toda em segundo e na penúltima jornada passámos para a frente. E com uma equipa nova, só com dois jogadores da época anterior, com 20 contratados. Conseguimos criar espírito de grupo e acabámos como uma família. O objetivo era a subida e foi uma felicidade grande conseguir mesmo no fim. É importante ter noções de como criar essa união e quebrar barreiras entre as pessoas. Sinto que tenho um dom para isso.
E agora? Vai continuar no clube e com que objetivos, ou tem algo em vista para, por exemplo, voltar a Portugal?
-Não está nada definido. O FC Ordino conta comigo, teremos de chegar a uma conclusão. Reunir e perceber os objetivos, ver se é para lutar por provas europeias. Neste momento é a primeira opção. Mas em um ou dois anos quero voltar a ser 100% profissional, seja aqui, na China, em Portugal ou em Marte. Se querem qualificação para provas europeias, não é compatível com outro trabalho. Temos de discutir isso. O futebol dá-nos o que nós lhe damos, mas tira mais do que aquilo que nos dá. Mas quando nos dá, dá-nos tudo de uma vez. Disseram-me isto uma vez e é o que eu sinto, é a sensação que tive quando acabou a liga. Tive sentimentos reprimidos toda a época por ir em segundo e acabamos campeões. O futebol tirou-nos, mas quando deu foi fantástico!