A globalização do futebol está a redistribuir influências, mudando o centro de gravidade da modalidade. Treinadores portugueses como Ricardo Estrelado e Sérgio Vieira partilham as suas experiências nos mercados emergentes, revelando oportunidades, paradoxos e limitações do investimento contextos tão distintos
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A expansão do futebol tem revelado um novo mapa competitivo onde o investimento económico se cruza com ambições políticas, culturais e desportivas. São cada vez mais os treinadores portugueses a aceitar projetos fora do continente europeu. De acordo com os dados mais recentes da Federação Portuguesa de Futebol (FPF), em 2023 havia mais de 400 treinadores portugueses espalhados pelo mundo, em mais de 60 países. Este fenómeno está longe de ser pontual ou acidental. Os especialistas acreditam que traduz uma tendência com raízes sólidas na política de qualificação técnica promovida em Portugal, nas últimas duas décadas. Um relatório do Observatório do Futebol CIES, publicado em 2022, reforça essa narrativa: Portugal aparece entre os cinco países do mundo com maior número de treinadores a trabalhar no estrangeiro. O estudo sublinha ainda a entrada do treinador luso em mercados diversos, do Golfo Pérsico à Ásia Central, da América do Sul ao Norte de África.
Ricardo Estrelado, atual treinador-adjunto da seleção da Guiné-Bissau, e Sérgio Vieira, com experiências nos Emirados Árabes Unidos, México e Finlândia, trazem testemunhos diretos sobre o que significa trabalhar nos mercados considerados emergentes.
Da terra batida ao relvado tratado
Ricardo Estrelado integrou a equipa técnica da seleção principal da Guiné-Bissau a convite de Luís Boa Morte. O técnico esteve presente na qualificação para a CAN e para o Mundial 2026. O treinador sente-se orgulhoso por representar uma seleção nacional, mas rapidamente se deparou com desafios logísticos e estruturais. As infraestruturas eram precárias e o material básico para treino era praticamente inexistente. “Nunca pensei que uma seleção principal não tivesse balizas, pinos ou estacas”, afirma.
Apesar de vários esforços por parte da equipa técnica, não houve qualquer investimento recente nas infraestruturas. A comparação com Portugal é inevitável: “Qualquer clube das nossas primeiras divisões distritais tem melhores condições do que os clubes da Guiné-Bissau.” Segundo o treinador, “a qualidade da seleção resulta do facto de a maioria dos seus jogadores jogar na Europa, com formação em academias portuguesas”.
O maior desafio não foi técnico, mas sim cultural: “Temos de aceitar que dificilmente se muda o modus operandi do país. Em África, muitas vezes, ouvimos ‘isso é assim porque é África’, e temos de aprender a lidar com isso.” Ainda que a riqueza cultural e a experiência de lidar com atletas de alto nível seja enriquecedora, o treinador reconhece que não voltaria a trabalhar num contexto semelhante sem a garantia de condições mínimas para um trabalho estruturado.
Sérgio Vieira e os bastidores do investimento árabe
Sérgio Vieira está a construir uma carreira fora de Portugal, com passagens pelos Emirados Árabes Unidos, México e Finlândia. Nos Emirados, procurou, como revela, “testar as capacidades, sair da zona de conforto e evoluir como profissional”. No México, a oportunidade surgiu em plena pandemia, enquanto a experiência na Escandinávia nasceu de um contacto direto com um jogador que conhecia o seu trabalho em Portugal. O treinador identifica diferenças marcantes entre os contextos. Nos Emirados, destaca uma clara falta de qualidade nos métodos de treino, embora compensada por uma aposta nítida em instalações de alto nível: “As infraestruturas de treino estão bem equipadas e os relvados estão quase sempre em excelentes condições, apesar do calor. Há investimento constante em estádios e centros de treino e até jogadores sub-14 recebem salário e prémios de jogo, como forma de incutir responsabilidade.”
O mercado de transferências reflete essa ambição. Os clubes combinam a contratação de nomes conhecidos com jovens entre os 19 e os 21 anos, com o objetivo de ajudar os mais novos através da partilha de experiências. No entender de Sérgio Viera, “isto representa uma mais-valia estratégica para o futebol do país”.
Em termos de competitividade, os Emirados registam – considera - uma melhoria crescente. "O treinador português tem sido um investimento ganho pelos árabes", garante. O técnico exemplifica o investimento em treinadores estrangeiros com experiência e aponta alguns nomes: “Leonardo Jardim, Paulo Bento e Paulo Sousa”.
Garantir o compromisso dos jovens talentos que já alcançaram estabilidade financeira e que podem perder-se no último degrau da formação são, na opinião de Sérgio Vieira, desafios comuns em mercados considerados ricos. “Destaco principalmente que consegui elevar a qualidade do treinador português, que consegui, entrar no mundo profissional sem empresário e sem UEFA A, porque apenas tenho o UEFA B, porque em Portugal infelizmente é só dificuldades.” Sérgio Vieira planeia regressar, mas apenas quando tiver acesso a formação complementar que lhe permita competir com treinadores de outras nacionalidades.
Futebol global, desafios locais
Os testemunhos de Ricardo Estrelado e Sérgio Vieira mostram dois lados de uma mesma moeda: o desejo de internacionalização do futebol e as profundas diferenças na forma como esse processo é vivido em contextos distintos. Enquanto alguns mercados emergentes investem com estratégia, como os Emirados Árabes Unidos, outros continuam a depender da paixão e da resiliência de quem acredita no potencial local, como a Guiné-Bissau. Em ambos os casos, a experiência portuguesa surge como referência de competência e adaptação, mas também como chamada de atenção para a necessidade de condições estruturais para que o investimento não seja apenas aparente, mas transformador.
A internacionalização do treinador português levanta questões económicas e institucionais mais amplas. Segundo Tomás Veríssimo, economista, “esta mobilidade deve ser lida como parte de uma estratégia de valorização do capital humano nacional”.
Mais do que um caso de sucesso individual, a internacionalização dos treinadores portugueses representa uma estratégia coletiva de inserção de Portugal na economia global. “Numa era em que a imagem de um país se projeta muito para além dos seus limites geográficos, o treinador português tornou-se um dos seus rostos mais respeitados. Esta questão da internacionalização do treinador português e do investimento do capital nacional é extremamente relevante, especialmente neste contexto de treinador de futebol”, refere Tomás Veríssimo. O economista sublinha ainda que “o reconhecimento além-fronteiras demonstra não só a qualidade da educação portuguesa, como também um reforço da posição de Portugal no mercado de valorização de capital humano, que pode surgir como uma função estratégica”.
A previsão é de que este fenómeno possa obter resultados bastante favoráveis no setor: “Tal reconhecimento pode ter um efeito multiplicador do investimento estrangeiro nas nossas instituições de ensino, ao mesmo tempo que vai atrair talentos e mais recursos financeiros. Trata-se de um ciclo virtuoso em que a valorização externa alimenta novas oportunidades internas, ajudando a estruturar o futuro do futebol e da economia portuguesa.” Num horizonte de médio-longo prazo, Tomás Veríssimo acredita que “estas dinâmicas poderão servir para aumentar a competitividade da economia portuguesa em setores que estão constantemente a necessitar de adaptação e inovação, favorecendo a criação de valor e o reinvestimento no capital humano português”.
Autor
Diogo Rodrigues
Cresceu em Vale de Santarém, mas foi obrigado a mudar-se para Cascais para ficar mais próximo da instituição de ensino superior onde ingressou, em setembro de 2024. Hoje, divide os dias entre a licenciatura em Jornalismo, na ESCS (Escola Superior de Comunicação Social), em Lisboa, e os campos de futebol. Estreou-se na AF Santarém e já integrou as equipas do UAlmeirim, SL Cartaxo, Estoril Praia e, mais recentemente, o GDMarinhais. Conciliar a universidade com a prática desportiva não tem sido fácil, mas Diogo Rodrigues está certo que, no futuro, o esforço valerá a pena.