"Sempre tive a ilusão de ver o Celta de Vigo jogar no campeonato português"
Luta pela Europa sente-se em Vigo, o Celta joga bem, enche o estádio, usa a prata da casa e convoca Portugal, suportada em doce intimidade. Carlos Blanco, ator, Kaixo, música, abordam momento inspirador
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Em Vigo multiplicam-se sorrisos, encadeiam-se vislumbres europeus, encanta o Celta com um projeto de cantera, de identidade, apego, com a simbologia de fundo da Afouteza e do hino centenário 'Oliveira dos Cem Anos'. Em Portugal acentua-se apreço, a ligação é próxima e gera tentações fronteiriças, na direção de Tui ou de Valença, por um bom alvarinho e um bacalhau em Portugal, por uma tortilha e um polvo em Vigo. E também o Albariño. Brinda-se, convive-se, canta-se Zeca, ou grita-se, Avante. Balaídos também entra no cartaz de romarias e visitas, há um futebol vibrante que acolhe fácil simpatia. Contam-se mais adeptos portugueses a tomar assento, seja no verão por um jogo e uma pedaço de praia em Samil, ou em qualquer outro cenário temporal pela degustação de bom futebol. Há três dezenas já com lugares garantidos...e esse entusiasmo luso casa na perfeição com a hospitalidade galega.
Ator consagrado pela geografia galega, interpretando, por exemplo, Laureano Oubiña em Fariña, Carlos Blanco, de 66 anos, vive enamorado pelo presente do Celta e pela irmandade cada vez mais cultivada com Portugal, quando um obrigado e um gracinhas se entrelaçam nas conversas, se fala de Zeca Afonso ou se grita Avante. O orgulho fraterno vem de prazeres recíprocos por umas tapas na Galiza, por um bacalhau em Portugal, por um alvarinho de Melgaço ou um albariño das Rias Baixas. No futebol também se conjuga o mesmo carinho e muitos adeptos do Celta já brincaram sobre o quão bom seria ver a equipa competir na Liga Portuguesa. "Sempre tive a ilusão de ver o Celta jogar no campeonato português, penso que seria o seu lugar natural e que poderíamos aspirar a mais, sermos terceiros, quartos ou quintos, jogando sempre na Europa. Competiríamos com Braga e V. Guimarães, distanciando poucos quilómetros. Renderia estádios cheios, os adeptos viajariam com gosto, seria bonito", relata Carlos Blanco. "A nossa irmandade com o norte de Portugal é algo real, histórico, temos a sensação de estar no mesmo país. Mudam os postos bancários e pouco mais. A gente, os sentimentos, a música, o jeito de ser e estar no mundo é idêntica. Na Europa não é, por acaso, que somos a região Galiza/Norte de Portugal, no aspeto económico, geográfico e cultural somos um só", conta Blanco.
Encanto em Arousa e uma provocação a Zambujo
O ator sente o futebol como estímulo óbvio de uma maior aproximação, tal e qual as artes do palco. "Seguimos ainda sem saber muito bem quem atua no Porto, mas sabemos que vai a Madrid. Isso não faz sentido, temos de ter mais canais bilaterais, coproduções, coisas comuns e um comboio rápido que nos leve sem demora de Corunha a Lisboa", reclama o ator galego, residente na Ilha de Arousa e muito por dentro de uma das mais bonitas manifestações de celtismo.
"Na ilha ser do Celta é o mais natural. Os meninos são do Celta, noutros lugares optam por Barcelona ou Real Madrid. Temos aqui a peña celtista Carcamáns. São mais de 1000 membros numa ilha de 5000 habitantes. O celtismo vai connosco. E pontualmente organizam um barco que leva 200 adeptos em pura festa para os Balaídos. Ver o Celta é precioso, como também foi viajar a Manchester, Amsterdão ou Bilbao, desfrutar e sofrer com a nossa equipa", atesta Blanco, maravilhado com as indicações atuais, dos valores gerados na Afouteza. "Não me lembro de um Celta com tantos jogadores da sua cantera. Isso é magnífico. Como se ouve no nosso hino de C. Tangana 'Son Celtista na victoria e celtista no padecer", regista Blanco, não deixando de parte uma lembrança cruzada com Portugal. "Em Vigo ninguém esquece o 7-0. Tenho um amigo benfiquista, muito conhecido por sinal na música portuguesa, o António Zambujo. Sei bem o que lhe custou esse resultado. Os benfiquistas acho que vivem com esse tormento."
"Este Celta representa-nos"
Kaixo é um rapper com carimbo muito próprio, fundamentando o seu trabalho nas vivências em Vigo. Também viveu no Porto, encontra fácil relação com Portugal, mas começa por explicar que vive a fase mais bonita como adepto.
"Há um regresso de um celtismo forte e identitário, a gente entende que esta é a equipa da Galiza, representa o idioma, a cultura, a nossa música, representa-nos a vários níveis. Há uma mistura cultural em volta do Celta", pontua, revivendo a história. "Tenho muitos momentos que me são queridos mas até recordo o dia em que também escrevi para a Líbero sobre a nossa salvação escrita por Aspas contra o Alavés. Recordo esse período como divertido, de ver jogos na 2ª Divisão. Foram seis anos de muita chuva, jogos realmente maus, sem dormir, e era tudo futebol e festa. Aspas aparece nesse jogo e foi um raio de sol. Era pouco conhecido, entra em campo e em dez minutos faz dois golos que ditam a nossa permanência, saca a camisola e festeja com os adeptos", lembra. "Ele foi a referência, fez magia para a nossa geração, como Mostovoi fizera antes. Agora esperamos por mais rapazinhos nosso...até porque o clube foi ao encontro do que queríamos, jogando com gente da casa", exprime, orgulhoso da conexão crescente do lado português. "Se já são 30 nos Balaídos, ainda podem ser mais! Podemos ser uma quarta força do norte, como o são o FC Porto, Braga e Guimarães."
"Não queremos extraplanetários, mercenários ou milionários, somos felizes com gente da casa"
Balaídos é caldeirão das emoções de um Celta de cantera, um teatro de sonhos galego, alimentando uma identidade e unidade que raramente se vira entre Vigo e o seu grandioso embaixador futebolístico. O Celta luta pela Europa com ânimo reforçado pelos últimos resultados e uma estreita cumplicidade entre equipa e público, um afeto injetado pela presença de múltiplos jogadores da casa e um treinador também profundamente enraizado na cultura celtista. Já antecipando uma abertura próxima de mais lugares no recinto, o Celta vai arrebatando corações no passado recente com Cláudio Giráldez, enchentes coladas ao protagonismo de tanta gente da terra, de Iago Aspas aos mais jovens. Canta-se a uma voz, cultivam-se cânticos e eleva-se o fervor num compromisso absoluto com essa linda cor celeste. Toma a palavra Dani, baixista dos Keltoi!, uma banda punk de longa trajetória na Galiza e com ligação musical já construída com o Celta. "Estamos na melhor etapa do Celta, não falo só dos resultados. Os aficionados estão a ver uma equipa comprometida com o seu público e seus valores, havendo respeito e uma natureza antifascista nas bancadas. Há uma profunda galegalidade, eu aguardo que seja, efetivamente, o começo de algo que devia ter começado há muito tempo. Deu-se uma longa desconexão, muitos problemas, até alguma repressão. Hoje fomos identificados com parte muito importante do clube", sustenta. "Ver jovens da cantera a saírem para a primeira equipa é muito valioso, é algo mais de nós. Está a dar resultados, havendo uma grande união entre jogadores, adeptos e clube, que se está a repercutir. Vivi o Euro Celta, os grandes jogos na Europa, as grandes vitórias mas isto é melhor, porque Balaídos está sempre cheio. Espero que não se mude a filosofia, acho que podemos conseguir algo muito bonito neste futebol que virou um negócio insuportável", evidencia Dani, pejado de emoções com o que está a presenciar.
"O projeto de canteranos é algo muito motivante, são jovens identificados com o Celta. Não queremos jogadores extraplanetários, mercenários ou milionários, ficamos felizes por ver gente da casa que cresceu nas nossas ruas. Galegos que sofrem quando o Celta perde igual que nós. Essa é uma conexão fantástica, que está a existir entre bancadas e campo. Gera uma ilusão incrível, não é preciso ambicionar títulos, porque o Celta assim é uma forma de vida", expressa. "Interessa-me o meu clube de coração, que sigo de pequeno, nem quero saber quem lidera o campeonato espanhol. É preciso entender o futebol como desporto da classe trabalhadora, de gente da rua, autêntica. Não nos queremos converter num Barcelona ou Real Madrid, que funcionam mais por atração turística que sentimento", ironiza.
O baixista do Keltoi! confessa-se expectante sobre as notícias de um emblema parceiro em Portugal. "Escutei algo mas não conheço os objetivos. Imagino que seja dentro do projeto de fazer crescer a cantera por outros lados, promover o celtismo, ajudar clubes modesto em África, montando escolas com rapazes e raparigas. Pode ser isso", questiona o músico, agradado com o cenário que narra do Celta suscitar maior admiração do outro lado da fronteira. "Encantava-me, mas eu não conheço casos. Mas espero que sim, que haja adeptos do Celta em formação na zona do Minho. Tivemos uma relação durante anos, se ele passa ao futebol será maravilhoso", afiança Dani, fascinado com o entoar do Grândola no final da receção ao Bétis. "Despedir esses adeptos com Grândola foi algo lindo, uma lição para essa gente que vem cheia de ódio. Não há espaço para essa ideologia no futebol, muito menos em Vigo. Não podemos permitir o ódio e discriminação que chegam com os fascistas e a ultra-direita. Alegrou-me esse momento nos Balaídos", vinca Dani, orgulhoso de ter visto a sua banda entrar num disco de homenagem ao Celta.
"É verdade que tivemos essa participação num disco de rock de tributo ao Celta, feito por um amigo de toda a vida, celtista. Há uma conexão real entre o Celta e a cena musical. Foi algo da nossa própria gestão, sem patrocínios."
"Estaríamos melhor na Liga Portuguesa mas não quero perder prazer de ganhar ao Barcelona ou Real Madrid"
Numa conversa rica pelas experiências de colaborar com o Celta ou sentir o apego celeste, falamos ainda com Israel Ruíz, músico dos Tumbitas, com alter ego João Tomba, atualmente rosto dos Anti-Mums. Foi chamado para um disco de tributo ao Celta. "O celtismo vem de sempre. O meu avô era um adepto muito louco, saiu um dia a tiro de Balaídos, porque queria mandar embora o treinador. Odiava-o, era uma espécie de Rafa Benítez nos oitentas. Ele foi expulso do campo e dizia que tinha deixado de ser do Celta. Mas tal nunca aconteceu, via era os jogos às escondidas", graceja, confessando-se adepto por "influência do avô e da cidade". Israel discorre ainda sobre o louvor musical, plasmado numa compilação de tributo ao Celta de 2022. "Quando surgiu essa oportunidade de fazer a canção, algo suplementar em relação ao hino do AC Tangana, que ficou muito bem, foi envolvida muita gente da cena rock. Sentimos que havia algo a dizer. Ficamos imensamente contentes de participar. Era algo como hey Celta, hey Celta, muito à medida da música do Bo Diddley", partilha, sentindo a grandeza do Celta, os dourados finais dos noventas, enquanto músico por várias salas da Europa. "Andava na Alemanha e Holanda e todos me perguntavam pelo Celta. Era um clube internacional, parecia o Real ou Barcelona, que tinha Mazinho, Karpin e Mostovoi. Lembro-me de ficar meio admirado quando chega Mazinho, um campeão do mundo, o que vinha fazer para cá", documenta, agarrando aquele pedaço de história, terrível para o Benfica. "Depois aconteceram coisas incríveis como o 7-0 ao Benfica, coisas que não voltam a passar-se", vinca, enfatizando o grau de esplendor do zar russo. "Toda a gente estava louca com Mostovoi. Era um craque gracioso. Ofereciam-lhe coisas, queriam fazer-lhe uma estátua. Até vi que foi abastecer o carro e não lhe cobraram", recorda Israel Ruíz, rematando com curiosa reação a uma provocação sobre onde caberia melhor o Celta. "Nunca está mal a Liga Espanhola, porque há sempre jogos para ganhar ao Barcelona ou Real Madrid. Isso é um prazer que não quero perder. Mas falando pelo coração estaríamos melhor na Liga Portuguesa."
"Hino deixa-nos com pele de galinha"
Enrique González 'Quique' não passa despercebido em Vigo como já longo proprietário do estabelecimento de concertos, Fábrica de Chocolate. Com vários amigos do meio musical em Portugal, a ligação feita pelas estradas que ligam a Galiza ao Minho é fértil e quase sempre proveitosa de bons pontos de encontro. Uma das suas romarias favoritas prende-se com o culto do futebol a partir dos Balaídos.
"O celtismo recordo de pequeno, de ir aos jogos com os meus pais, tios, amigos da família. Lembro tempos de 2ª Divisão, mas hoje já temos um processo de modernização que fazia falta. A identidade está a ser bem protegida, foi-se pela cantera, porque não havia dinheiro. Está a dar resultados", valida, aprovando a extensão das apostas feitas, no contexto da história das últimas décadas. "O Celta passou períodos muito distintos. Esteve na Champions fazendo um 4º lugar. No ano que lá compete sofre a descida terrível à 2ª Divisão. Foi uma equipa que criou muitas ilusões mas também se afundou. Agora vivemos dos canteranos, tivemos um onze com oito recentemente. Esta foi uma mudança barata e positiva", admite, entendendo um esforço positivo da gestão de Marián Mouriño. "As linhas são as mesmas do pai, mas ela soube apostar na modernização, mudou todo o organigrama, já que havia muitos cargos no Celta distribuídos por linha familiar". evidencia. Atento ao papel da música na revitalização da componente social do clube, Quique identifica a cumplicidade que se tem enraizado nas bancadas entre perto de 30 mil espetadores. "Houve muita sorte com a celebração do centenário, o hino que foi criado pelo C. Tangana. Ele armou e ligou a música tradicional com um grupo punk. Aglutinou forças musicais, hoje todos os jogos são um puro espetáculo, ficamos em pele de galinha com a música. Fazem-se concertos no estádio que animam os adeptos", explana, expectantes de mais pontes construídas para ligar o Celta a Portugal. "Temos um tema identificativo com Portugal, creio que vêm portugueses ver jogos aos Balaídos, da mesma forma que já fui ver jogos da Liga Europa a Braga. É algo interessante, que nos vai bem. Aliás, o amor ao Celta vai além de Vigo, há muitos adeptos nas Rias Baixas, em Ourense, é um clube que aflora sentimento galego", explica o proprietário da Fábrica de Chocolate, brincando com a sua memória do 7-0 ao Benfica. "Foi incrível, eu posso dizer que existem quatro jogos na vida que me lembre de tudo, de onde estava e com quem estava. Esse foi um deles, estava em Compostela com uma rapariga e sempre distraído se olhava para ela ou para a tela. No final, fui ficando cada vez mais colado na televisão", relembra Quique, esperando voltar a ver o Celta na Europa. E nunca duvidando de Iago Aspas. "Há que aproveitá-lo o máximo que der. É uma referência, temos de endeusá-lo como o representante do espírito da equipa e nosso baluarte. Oxalá possa seguir e ainda espero que venha tomar umas cervejas à Fábrica."