DESPORTO EM TEMPO DE GUERRA - Em 1982, disputou-se a última Taça da Inglaterra sem paz. Travava-se a Guerra das Malvinas entre Argentina e Grã-Bretanha. Os vencedores do conflito foram os britânicos e na final - que foi finalíssima - ganhou o Tottenham... o tal dos magos argentinos Ardiles e Villa, que jogavam em terreno inimigo.
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Osvaldo Ardiles era um campeão do mundo sem saber bem o que lhe tinha acertado em cheio na cara naquela tarde. O consagrado argentino tinha o mundo, o futebol inglês, o Tottenham a seus pés, mas, um dia depois de ter eclodido a guerra nas Ilhas Malvinas, entre o país que era o seu e o país onde jogava, aquele desafio e os cânticos vindos das bancadas deixavam o médio artístico sem a posse total das suas tremendas qualidades futebolísticas. O peso era demasiado num Villa Park que acolhe uma semi-final ainda hoje muito falada, de amores e ódios trocados. Foi a antecâmara estranha da que seria a última final da Taça de Inglaterra jogada sem que houvesse paz, mesmo que os combates se disputassem a mais de 12 mil quilómetros de distância.
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Leicester City e Tottenham Hotspur disputaram na tarde de 3 de abril de 1982 a meia-final da Taça de Inglaterra, da qual os londrinos eram detentores. Em 1981, graças a Ardiles e ao outro argentino mágico Ricardo Villa - autor de um golo antológico, ainda hoje dos maiores que Wembey viu -, os spurs bateram na finalíssima o Manchester City. Era o ponto mais alto de uma aposta inusitada na altura. O técnico Keith Burkinshaw decidiu contratar a dupla campeã do mundo pintada de fresco em 1978, desafiando todo o "establishment". À altura, ter argentinos era uma extravagância (o também campeão mundial Tarantini teve nessa altura uma passagem episódica pelo Birmingham City), mas em White Hart Lane o duo encontrou um futebol acolhedor graças a um homem em particular: Glen Hoddle. O craque dos spurs era portador de um futebol técnico, envolvente, longe do "kick and rush" típico do futebol das ilhas e impediu que os sul-americanos andassem pelo ar a ver a bola, acomodando-os pela relva. A glória não demorou a chegar, mas em 1982, o mundo de Ossie e Ricky, como se celebrizaram em Inglaterra, dissipava-se entre o fumo de tiros disparados bem longe dali.
Ardiles acordou para a realidade na véspera do encontro, do qual sairia vitorioso (2-0), mas seria o seu último na primeira passagem pelo Tottenham. Primeiro foi a presença maciça de jornalistas à volta do campo de treinos; depois, a explicação: a guerra tinha rebentado entre uma Argentina sob o jugo de uma ditadura militar e uma Inglaterra conservadora pela posse das Malvinas (Falklands para os anglo-saxónicos), arquipélago do Atlântico Sul sob administração britânica desde 1830, mas que antes andara de mão em mão. A invasão argentina foi entendida como agressão inaceitável pela administração de Margaret Tatcher, que respondeu com dureza.
Surpreso e em território inimigo, ainda antes que a bola lhe chegasse Ossie ouvia ressoar das bancadas do Villa Park, "England, England" . Era o público do Leicester. Curiosa foi a reação dos spurs. Além da tarja "Fiquem com as Malvinas, nós ficamos com Ardiles", gritavam "Argentina, Argentina", quando o médio intervinha. Mas a ficha da realidade áspera da guerra ainda não tinha caído. Caiu (ainda mais) para Ardiles um mês depois.
O outro Ardiles
José Leónidas Ardiles, primeiro-tenente da força aérea argentina, entrou no cockpit do seu caça IAI Dagger na manhã de 1 de maio de 1982. A morte entrou com o primo de Osvaldo Ardiles. Pepe, como era conhecido, deparou-se com uma patrulha de combate inglesa e foi abatido. O governo argentino conceder-lhe-ia a medalha de valor em combate e promoção a capitão "post mortem". Já sem condições psicológicas para continuar a jogar em Inglaterra, Ossie ficou devastado com a morte de Pepe - ainda hoje não consegue falar dele sem chorar. Mais que derrotada, a Argentina foi humilhada nas Malvinas. Em dois meses e cinco dias, a Inglaterra, ou melhor, o Reino Unido, subjugou um inimigo mal equipado para a provocação que lançara. Esfaimado, encurralado, o exército argentino rendeu-se e contou os mortos em combate: 649. Do lado inglês, perderam a vida 255 soldados. Entre feridos e aprisionados o número argentino chegou a ser quase dez vezes superior ao dos britânicos.
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A final sem argentinos
Pelo meio, houve uma Taça de Inglaterra por jogar, a última em tempos de guerra desde 1915, quando Sheffield United e Chelsea (3-0) se defrontaram em Old Trafford, na chamada "final khaki", atendendo ao número elevado de soldados na assistência - a prova só seria retomada em 1919, um ano após a I Guerra Mundial (1914-1918).
Quando Tottenham e Queen's Park Rangers subiram ao campo a 22 de maio de 1982, ainda se combatia e morria nas Malvinas. Ardiles já não estava entre os londrinos e Villa só estava pela metade. Ossie regressara à Argentina sob o pretexto de que tinha de integrar a comitiva do seu país que preparava o Mundial de Espanha desse ano. A verdade era mais áspera: Ossie antecipara o regresso por já não conseguir respirar o ar inglês. Não convocado por Menotti, Villa ficou em Londres, mas todos entenderam que ao herói da final anterior seria difícil desta vez. Villa não podia estar mais de acordo. Tal com no ano anterior ante o Man. City, só ao segundo jogo os londrinos ergueram a FA Cup, a 27 de maio - 1-0, golo de Hoddle, o tal astro que aveludara a integração do duo das pampas. Menos de três semanas depois, a "union jack", a bandeira do Reino Unido, voltava a ser içada nas Malvinas.
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Villa aguentou mais uma época no Tottenham, mas voltou de vez para o continente americano. Ainda hoje é idolatrado pelos spurs. Ardiles foi emprestado ao PSG, mas o que ganhou em paz perdeu no futebol. Com o aliviar do panorama, voltou para uma segunda vida no Tottenham, onde é toda uma instituição. Vive até hoje em Broxbourn, um afluente subúrbio de Londres.
José Leonidas Ardiles é considerado um mártir nacional e o primo Osvaldo vai sempre visitar o resto da família quando volta à cidade dos Ardiles, Bell Ville.
Por causa da Covid-19, a Argentina, em paz com Inglaterra, ofereceu ajuda humanitária ao arquipélago, dada a proximidade geográfica entre os dois territórios.
Pela primeira vez desde esses dias escuros das Malvinas, ou Falklands, a próxima final da Taça de Inglaterra poderá voltar a ser jogada em tempos de incerteza e mortandade, no combate a um vírus.