Em dois anos, o contingente luso do Differdange conseguiu o primeiro título de campeão. Na época passada fez a dobradinha. Foi com dedo português, dos dirigentes aos jogadores, passando pelos funcionários, que o Differdange fez história no futebol do Grão-Ducado. Os portugueses no Luxemburgo rondam os 80 000.
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Visitar Differdange, no sudoeste do Luxemburgo, é reencontrar o que de melhor há em Portugal. A mais de 2 000 quilómetros de casa, caminhar pela cidade de 18 000 habitantes é, para muitos, o mesmo que caminhar por qualquer cidade portuguesa. Ou seja, uma espécie de “Portugal dos Pequenitos”. Com mais de 30 cafés e restaurantes onde só se fala português, escolas de condução com letreiros no idioma de Camões, e a Rádio Latina e o Jornal Contacto a darem notícias com sabor bem nacional, a portugalidade está por todo o lado.
Chegados aqui, surge a incrível história do FC Differdange 03, clube da pequena localidade do sul do Luxemburgo, fundado em 2003, e no qual um extenso contingente luso apenas precisou de duas épocas para lhe dar o primeiro título de campeão nacional e fazer a dobradinha, na época passada, com nova vitória no campeonato e a conquista da Taça do Luxemburgo.
Hoje em dia, o D03, como também é conhecido, é um dos grandes clubes do futebol luxemburguês. Quando se entra nas suas instalações, a receção é feita com um “bom dia”. À porta está José Leiras, roupeiro do clube há mais de dez anos. Já foi treinador de guarda-redes em épocas anteriores e é considerado uma das grandes almas do emblema do Grão-Ducado.
Ao lado dele, três mulheres fundamentais: Maria e as duas Sandras, responsáveis pela lavandaria, cozinha e limpeza. Constituem uma verdadeira equipa, coordenadas com precisão quase militar – sempre sob o olhar atento de Leiras, o “treinador” desta formação fora das quatro linhas. A equipa conta ainda com Armindo e Miguel, dois portugueses que asseguram o transporte e o acolhimento dos jovens da formação, garantindo uma organização exemplar.
Assistir a um treino da formação é como estar num campo em Portugal: ouve-se português a cada metro. Mais de metade dos miúdos são portugueses e cerca de 80% dos treinadores são lusófonos. O coordenador da formação, Hélder Dias, também é português e mais uma peça fundamental neste verdadeiro núcleo luso. A fotógrafa Jéssica Carmo é a responsável por todo o trabalho de imagem e também uma das craques da equipa feminina, liderada pelo também português, Nuno Borges.
Fundado no primeiro dia de 2003, o Differdange estabilizou como clube sólido da I Liga luxemburguesa. Antes do feito dos últimos dois anos, tinha cinco taças do país e quatro segundos lugares no campeonato. O grande impulsionador deste crescimento é o diretor-desportivo Remy Manso. Dono de 12 restaurantes e empregador de mais de 300 portugueses no Luxemburgo, Remy decidiu apostar forte no futebol depois do sucesso no futsal, contratando jogadores como Xot (ex-Braga), Djô (ex-Sporting) e Rúben Reis (ex-Rio Ave); levou o D03 ao pentacampeonato e ao 20.º lugar no ranking mundial da modalidade.
Manso confiou o futebol sénior a Pedro Resende, treinador português com duas décadas de experiência no Luxemburgo. Com um staff 100% português, formado pelos adjuntos André Mendes, 30 anos, António Viana, 42 anos, e Vítor Loureiro, 47 anos, o treinador de guarda-redes Rúben Araújo, 31 anos, e o fisioterapeuta Ricardo Lobo, 39 anos, a equipa ganhou um perfume ainda mais luso. Reforçaram o plantel com vários jogadores portugueses provenientes do Campeonato de Portugal, e, com o sexto orçamento mais baixo da liga (900 mil euros), competiram com gigantes como o Hesperange (mais de quatro milhões de euros), que chegou a ser liderado pelo também português Carlos Fangueiro.
Contra todas as expectativas, conquistaram o primeiro título da história do clube em 2023/24, na casa do grande rival, o Progrès Niederkorn.
Mesmo com a entrada de um milhão de euros pela qualificação para a Liga dos Campeões, a Direção manteve o orçamento da época anterior. Em apenas dez dias, Resende, Manso e Mendes reformularam o plantel, reforçando-o, entre outros, com Felipe (ex-Braga), Leandro Borges (ex-Caldas) e Diogo Silva (ex-Paredes). Enfrentaram adversários com orçamentos 15 a 20 vezes superiores e, mesmo assim, caíram apenas nos penáltis contra o campeão do Cazaquistão.
A segunda época superou todas as expectativas. Apontados como candidatos ao último lugar do pódio, tornaram-se campeões com 23 vitórias, um empate e uma derrota. Garantiram o título a 19 de abril, com cinco jornadas por disputar. A defesa foi um verdadeiro esteio, com apenas sete golos sofridos. Além disso, conseguiram o quarto melhor registo mundial de minutos sem sofrer golos – 1 561 – entre 7 de dezembro e 18 de maio. Tudo isto com um guarda-redes de 41 anos, antigo titular do Flamengo e do Braga, cuja contratação foi inicialmente recusada pelo presidente.
O Differdange venceu também a Taça do Luxemburgo frente ao histórico Dudelange, fechando-se agora esse ciclo dourado com a saída de alguns dos que participaram nesta aventura. A equipa técnica, por exemplo, já foi informada que não continuará. Por aqui passaram também Diogo Silva, Arlindo Barbosa, Rui Nibra, Gonçalo Lixa, Jorginho e Joca (os últimos quatro deixaram a equipa em janeiro), bem como Evan, Fábio Martins, Rapha Ribeiro, Pedro Mendes, Alisson Santos e Artur Abreu, com nacionalidade luxemburguesa, mas filhos de portugueses. Numa equipa com 27 jogadores, o plantel tinha 12 portugueses, cinco franceses, quatro brasileiros, dois argentinos, dois ítalo-luxemburgueses, um alemão e um neerlandês.
“Tínhamos o objetivo claro de ser bicampeões”
Pedro Resende, natural do Porto, está no Luxemburgo há 22 anos, somando dez épocas como jogador e assumindo o cargo de treinador desde 2013, liderando o FC Differdange 03 nos dois campeonatos conquistados. Para o técnico de 48 anos, o segredo está no grupo e não nas individualidades, destacando ainda o conhecimento da comitiva portuguesa.
“Sinceramente, foi fácil gerir o grupo. Primeiro, porque havia uma grande cumplicidade entre todos, jogadores e equipa técnica. Foi sempre um grupo extremamente unido, tínhamos um objetivo claro de sermos bicampeões e a união que houve na época inteira foi fundamental”, atirou.
“Muito importante, também, foi o facto de serem portugueses, sem dúvida. Principalmente pela cultura de jogo que têm, que foi aquilo que mais nos ajudou. Juntando a isso às qualidades técnicas de jogadores de outras nacionalidades, conseguimos fazer um grupo de grande qualidade e fomos bicampeões com todo o mérito”, concluiu.
“A nossa realidade financeira não nos permitia bar aberto…”
Remy Manso, natural de Castelo Branco, tem apenas 39 anos, mas já é proprietário de 12 restaurantes e emprega mais de 300 portugueses no Luxemburgo. Atual diretor-desportivo do FC Differdange 03, afirma que o sucesso apareceu mais cedo do que o planeado. “No primeiro ano, o projeto foi pensado para ganharmos o campeonato a dois, três anos. Sabíamos da nossa realidade financeira, éramos o quinto ou sexto clube com maior orçamento, por isso tínhamos que investir da melhor forma possível, porque quanto menos dinheiro tens, melhor tens de o gastar, não tens bar aberto”, começou por afirmar a O JOGO.
Para o dirigente, o barcelense André Mendes, “fez um excelente trabalho de scouting”, visto que “conhece muito bem as ligas inferiores de Portugal” e, dessa forma, conseguiu “juntar as peças e formar um grupo forte. Individualmente não tínhamos nenhum jogador que fosse muito mais forte do que os das outras equipas. Ganhámos pelo grupo.”