Plano Wenger abre um conflito: o problema, o caso português e vários testemunhos
A Arábia Saudita quis estudar um Mundial bienal, Arsène Wenger adorou a ideia e acrescentou-lhe uma mudança profunda nas datas FIFA, que passariam a ser duas (ou apenas uma) e mais longas durante a época. O plano é defendido por alguns ilustres, mas tem recebido críticas duras e ameaças de boicote. Todos querem mudar, mas como?
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Temos um problema: o calendário competitivo, com quatro períodos de seleções entre setembro e março, não agrada a praticamente ninguém.
A necessidade de alterar o calendário é consensual, mas a sugestão de comprimir os períodos de seleções e tê-las em grandes torneios todos os anos lançou um alvoroço
Aos jogadores pela carga a que são sujeitos, aos clubes pelas paragens constantes e aos selecionadores, por terem pouco tempo para trabalhar. Como resolver isto? É outro problema. Porque se no primeiro ponto estão todos de acordo, no segundo ainda não se encontrou uma solução consensual e as respostas ao recente plano de Arsène Wenger são um exemplo claro. O chefe para o desenvolvimento global do futebol da FIFA quer o Mundial de dois em dois anos, intercalado pelas principais competições continentais (Europeu, Copa América, CAN, etc...) e, com isso, revolucionar o calendário. Os meses de outubro e março (ou até só o primeiro) ficariam totalmente entregues às seleções para a qualificação e, após cada fase final, seria obrigatório conceder 25 dias de férias aos internacionais.
Deu-se um alvoroço: as reações multiplicaram-se e choveram críticas, algumas bem duras, mas há nomes ilustres dos dois lados da barricada. O JOGO escutou mais opiniões e a tendência manteve-se. Mudanças precisam-se, mas parece que estamos num nível diabólico de um jogo de Tetris, em que se resolve um problema e aparece outro e mais outro...
Menos viagens e mais oportunidades
A ideia do antigo treinador do Arsenal não saiu inteiramente da cabeça dele, mas da federação da Arábia Saudita, que no último congresso da FIFA, em maio, submeteu uma proposta para estudar a realização do Mundial (masculino e feminino) de dois em dois anos. Das 211 federações, 166 votaram a favor e 22 contra, no que já pode ser um sinal importante para futuras decisões. "É preciso menos diversidade no calendário entre jogos de clubes e de seleções, o que, por exemplo, reduziria o número de viagens transcontinentais para os jogadores. Há estudos sobre a recuperação que sustentam que a fadiga dos jogadores é impactada pelas viagens e por mudanças repentinas do clima", defendeu Wenger, em entrevista ao "L"Équipe", no início do mês, ao mesmo tempo que, nem de propósito, os treinadores europeus ficavam à beira de um ataque de nervos com a chegada (ainda mais) tardia dos internacionais sul-americanos.
O francês tem andado em operações de charme para convencer o mundo do futebol a aderir a esta revolução, que seria "assinada com as duas mãos" pelo Arsène treinador, "para ter os jogadores mais tempo à disposição no clube". Numa dessas iniciativas, Wenger apresentou pessoalmente o projeto a dezenas de antigos futebolistas e treinadores, como Nuno Gomes, Ronaldo, Peter Schmeichel, Amuneke, Tim Cahill, Materazzi, Jurgen Klinsmann e Avram Grant, que compõem o Grupo de Aconselhamento Técnico da FIFA. O antigo guardião dinamarquês assegurou que "todos concordaram" com a ideia, o Fenómeno deu o exemplo do "prestígio" da Liga dos Campeões, que se realiza todos os anos e Cahill lamentou que a Austrália precise de três anos para se qualificar para o Mundial, enquanto outras seleções nunca conseguiram lá pôr os pés. São 133, para sermos exatos, noutro argumento de Wenger, convicto de que um mundial bienal vai "reduzir a desigualdade" e que o facto de o ciclo de quatro anos ter sido instituído em 1930 é um sinal de que é preciso mudar.
Quanto à qualificação, Wenger sugere que se desenrole, por exemplo, em seis jornadas disputadas por grupos de quatro equipas. Sobraria menos espaço para jogos de preparação e provas como a jovem Liga das Nações (a europeia e não só) desapareceriam: "Os jogadores não querem jogos que não os estimulem e não tenham grande significado. A beleza e prestígio de uma competição dependem da qualidade e não da frequência. Não podemos organizar competições vulgares, apenas as melhores."
Assumidamente a favor, chegaram-se à frente a confederação africana e as federações de Nepal, Bangladesh, Sri Lanka, Maldivas, México e Costa Rica...
Saúde dos jogadores no centro das críticas
Wenger diz que a resposta tem sido "muito positiva", mas este cenário é, no mínimo, dúbio, tendo em conta que a UEFA ameaçou um boicote e a CONMEBOL, que antes até se manifestara interessada, entende agora, "após análises técnicas" que é "altamente inviável".
Para Aleksander Ceferin, presidente do organismo europeu, "jogar um torneio de um mês em todos os verões é terrível para os jogadores" e o "valor" do Mundial está precisamente em "disputar-se a cada quatro anos". As 13 principais ligas europeias, nas quais se inclui a portuguesa, rejeitaram a ideia - "competições novas, reformuladas ou alargadas não são as soluções para os problemas do jogo, num calendário já congestionado" - e o futebol luso reforçou os protestos num comunicado conjunto de FPF, Liga, Sindicato dos Jogadores, Associação Nacional de Treinadores de Futebol e Associação Portuguesa de Árbitros de Futebol. Alegam, entre outros motivos, os impactos na "saúde física e mental" dos jogadores, a "sobreposição de provas", a "perda de visibilidade" dos torneios jovens e os efeitos de os "clubes ficarem sem competição" por um mês inteiro no decorrer de uma época.
Outra das reações mais contundentes chegou de Jurgen Klopp. "Nenhum outro desporto tem um calendário tão implacável. Há modalidades fisicamente mais exigentes, como o atletismo, mas eles não correm 20, 30 ou 40 maratonas num ano. O que aconteceu à boa, velha e muito importante pré-época sem qualquer torneio no verão?", atirou o treinador do Liverpool, que até admite discutir as propostas sobre os períodos de seleções, mas que só vê um motivo para o mundial bienal: "O que quer que digam sobre dar oportunidades a diferentes países, no fim, é tudo pelo dinheiro." Wenger garante o contrário e lembra que a FIFA "distribui o dinheiro pelas federações para que desenvolvam o futebol". Aqui chegados, é inevitável ver as receitas acumuladas pelo o organismo no Mundial de 2018: 5,4 mil milhões de euros, o torneio mais lucrativo de sempre.
Reflexão sobre o caso português
Toni Conceição, selecionador dos Camarões, Jorge Costa, que orientou o Gabão entre diversos clubes e Leonel Pontes, que passou pelas equipas técnicas de Portugal, Marítimo e Sporting, deram o seu parecer a O JOGO.
O primeiro, ciente de que "os calendários estão sobrecarregados", mostra-se a favor da reforma do calendário. "O ideal seriam duas paragens em vez das quatro. É uma proposta mais vantajosa para os clubes, enquanto os selecionadores teriam mais tempo para preparar os jogos", comentou Toni. Já Jorge e Leonel não acham que seja a melhor das ideias e abordaram o caso português. "Estive numa reunião com todos os treinadores e FC Porto, Benfica, Sporting e Braga tinham a preocupação de, após a pausa das seleções, retomar com a Taça da Liga ou Taça de Portugal", revelou Jorge Costa, num cenário que se tem verificado nos períodos de outubro e novembro, mas que tem um senão: "As equipas mais pequenas, estando fora, iriam ter uma paragem muito grande. Mas, defendendo os interesses das equipas portuguesas na Europa, sou obrigado a concordar." Leonel Pontes vê isto como uma forma de "proteger os jogadores" e sugere outra mudança: "Provavelmente, reduzir uma competição ou tirar clubes ao campeonato."
Até 2024, pelo menos, o calendário internacional fica como está e a FIFA garante que este projeto será decidido de forma democrática pelas federações. Entretanto, prossegue o processo de consulta e uma inevitável campanha das duas fações. A FIFPRO, o sindicato mundial dos jogadores, alerta que uma reforma destas "não tem legitimidade sem a concordância" de quem joga e deu um puxão de orelhas a todos pela "falta de diálogo genuíno".
TESTEMUNHOS
"É urgente arranjar uma solução. Os calendários estão sobrecarregados", Toni Conceição (treinador dos Camarões)
"É urgente arranjar uma solução para as várias paragens dos campeonatos. A situação atual não interessa aos clubes, que perdem jogadores quatro vezes durante a época, e não interessa selecionadores, que não têm tempo para trabalhar. Seria mais oportuno arranjar um período mais longo para os jogos de seleções, defendo que o ideal seriam duas paragens. Há jogadores que estão a realizar um número exagerado de jogos, os calendários estão sobrecarregados e isso aumenta muito o risco de lesões. Há que ouvir treinadores, jogadores, médicos. Algo tem de ser feito e não é acrescentar competições."
"Temos de reduzir uma competição ou retirar clubes ao campeonato", Leonel Pontes (treinador)
"Faz mais sentido alternar os jogos de apuramento e não numa fase concentrada. Um mês para uma qualificação iria obrigar a que existissem dois jogos por semana para os clubes. No meu primeiro jogo [pelo Sporting], num domingo, recebi os jogadores na sexta-feira, fizeram viagens intercontinentais. No Marítimo, tinha tempo para mudar coisas na tática [durante a paragem]. Temos, provavelmente, de reduzir uma competição ou tirar clubes à liga. Os clubes queixam-se, mas utilizam quase sempre os mesmos. Há sempre cinco ou seis jogadores dos plantéis de 24 atletas que não jogam."
"CAN tem de passar para o verão, afeta as ligas numa fase decisiva", Jorge Costa (treinador)
"A ideia de Wenger é arrojada e não me parece a melhor. Há tanta gente a pensar o futebol hoje em dia...isto choca com outros interesses que não vale a pena esconder, os financeiros. Algo tem de ser feito, há uma sobrecarga e é preciso cuidado porque os jogadores não são máquinas. Sei que é difícil, porque já estive nos dois lados. O que se passou no último Sporting-FC Porto foi complicado, com jogadores diretos para estágio, num jogo que vale muito e pode condicionar as aspirações das equipas. Defendo que a CAN passe para junho/julho. Afeta quase todos os campeonatos, numa fase decisiva."