"Para nós em Vigo, Portugal é como nosso, a fronteira de Tui não existe"
Adeptos do Celta celebraram Grândola e o 25 de Abril e reclamam relação mais intensa com os portugueses, propõem linha de autocarros e jogo anual com o FC Porto. Música de Zeca Afonso ecoou como despedida perfeita dos adeptos do Bétis, que levaram cânticos fascistas para os Balaídos. Memorável, todos o garantem
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Adeptos do Celta celebraram Grândola e o 25 de Abril e reclamam relação mais intensa com os portugueses, propõem linha de autocarros e jogo anual com o FC Porto. Música revolucionária de Zeca Afonso ecoou como despedida perfeita dos adeptos de extrema-direita do Bétis, que levaram cânticos e adereços fascistas para os Balaídos. Memorável e inolvidável, todos o garantem
Nesta reportagem a auscultação necessária ao impacto de uma música servida como reação a gritos fascistas no último Celta-Bétis. Perico Balado, guionista de concursos, Duran Morris, ator, Alfonso Pato, diretor de um festival de cinema, e o rapper Kaixo, todos bravos apoiantes do clube viguês, expressam o amor pela fraternidade com Portugal e o afeto por Zeca Afonso e pela Revolução de Abril.
Foi episódio viral, foi também uma homenagem sentida da Galiza a Zeca Afonso, foi também um abraço fraterno a Portugal e uma lição de história e liberdade dada nos Balaídos, reduto do Celta Vigo aos adeptos do Bétis, a duas falanges de extrema-direita, Supporters Gol Sur e Suburbios Firm, que deixaram um rasto de cânticos fascistas e saudações nazis, entre bandeiras com o mesmo simbolismo doutrinário. Nas imediações do estádio, os referidos adeptos propagaram ao que vinham, cantando 'Cara al Sol', frequência falangista, e com a vantagem de dois golos, antes da reviravolta do Celta para 3-2 (com onze espanhol e seis da cantera), foram acentuando provocações no recinto. A melhor resposta, um tipo de catarse poética, foi guardada para o final, disseminada com estrondo pela força da captação, até feita por alguns portugueses da fronteira, que gostam de ver a equipa viguesa, numa prova de afeto impagável entre os galegos e Portugal, no caso mais concreto, entre o Celta e a revolução de Abril. De facto, por toda a Galiza o sentimento pelos cravos e por Zeca Afonso é gigante e o Grândola Vila Morena, mensagem sublime de um novo Portugal, também é entoada em terras galegas como bandeira da liberdade ou hino festivo em várias ocasiões.
Para a história ficou o concerto de 10 de maio de 1972, quando o notável cantautor português estreou da sua voz esta música para uma plateia de estudantes na Universidade de Compostela, num concerto dado nas valências da Faculdade de Ciências Económicas. A devoção a Zeca Afonso existiu sempre e em cidades como Vigo, proximidade com a fronteira, e Santiago Compostela, barómetro reivindicativo da região e de uma comunhão com a lusofonia, a letra está sempre na ponta da língua a cada passagem de 24 para 25 de Abril.
O JOGO foi ao encontro de quatro adeptos do Celta sintonizados com o momento especial que se viveu nos Balaídos, cerca de 40 minutos depois do jogo terminar, esperando os ditos adeptos do Bétis a evacuação do recinto em conformidade com as normas de segurança.
"Jeito bonito de nos despedirmos dos radicais"
Perico Balado, 32 anos, guionista e comunicador, regista o que aconteceu...refletindo sobre esta vaga mais crítica de adeptos. E reclama por linha de autocarros e bilhetes à venda nas terras fronteiriças de Portugal.
"Ouvimos as manifestações fascistas de duas claques, que não são representativas do Bétis mas são muito ruidosas. Muitos adeptos do Bétis até nos congratularam nas redes pela vitória por conta da presença desses elementos. Existe um problema nos estádios espanhóis, porque há muitos movimentos Ultras de Ultra-Direita. Avançou-se algo, mas ainda temos sintomas fortes. A começar pelo Atlético Madrid, no Espanhol, no Valência, 50 ou 60 por cento dos clubes profissionais terá medidas a tomar com estes adeptos. Felizmente no o Celta não os temos como visíveis", afirmou, oferecendo o contexto da cirúrgica reação difundida pelo sistema sonora dos Balaídos.
"O dj dos Balaídos faz uma seleção musical muito centrada no momento, usa alguma ironia na hora de colocar as músicas para apalpar o que está a acontecer. Há um grande trabalho de comunicação desde a entrada na presidência de Márian Mourino. Neste caso, foi a resposta perfeita com Bella Ciao, que todo o mundo conhece o significado político em Itália, mas também popularizada na Casa de Papel, mas tocar Grândola foi a cartada certa, porque nos é querida e tem alcance particular. Eles aguardavam pela saída e foi um jeito bonito de despedida dos radicais. Alguns adeptos nossos e outros portugueses ainda presenciaram o sucedido e gravaram", atesta.
Perico, mesmo de uma geração bem tardia relativamente à Revolução dos Cravos, tem os acontecimentos devidamente, absorvidos e aprofundados, e Zeca no coração. "Grândola é um tema que sentimos como nosso. Zeca cantou pela primeira vez a música em Compostela e tinha muito carinho pela Galiza. Esta música é o nosso símbolo da liberdade e democracia, também é a nossa celebração em alguns ambientes. Ainda na passagem do 50º aniversário da revolução, centenas de pessoas reuniram-se a cantar «Grândola Vila Morena» em Compostela. Faz parte da nossa vida", destaca Perico Balado, alguém muito interventivo nas redes e atento a descargas virais como quando um inquérito feito com adeptos do Celta deu conta da preferência de competirem em Portugal, cansados de prejuízos pelas arbitragens.
"Foi uma piada mas que foi tomada com bom gosto. Os adeptos do Celta sentem-se próximos de Portugal e os vizinhos da Corunha até nos chamam portugueses. Esta ligação tem aumentado, é algo muito positivo e que se pode explorar mais. É frequente ouvir os portugueses nos Balaídos e o Celta podia chegar mais às cidades do norte de Portugal, tentar criar uma linha de autocarros, vender entradas nas terras fronteiriças. É um mercado muito interessante e espero que esta Direção, que tem acertado tanto, possa ir por esse caminho", observa Perico, só esperando um português que triunfe na equipa. "Já tivemos alguns como Cadete, Vasco Fernandes, Gonçalo Paciência, Bruno Caires, Capucho. Falta um que venha brilhar."
"Tarde inolvidável, pela remontada e por Grândola"
António Durán Morris, célebre ator de Fariña, até estava em Sevilha com uma peça de teatro mas colheu já todo o impacto viral da música dedicada pelo Celta aos adeptos ultra-radicais do Bétis
Duran Morris, ator premiado na Galiza, homem multifacetado do cinema e teatro, repleto de desconcertantes personagens, famoso Manuel Charlín, em Fariña, também é raro perder jogos do Celta. Perdeu este, precisamente, por estar em trabalho em Sevilha. "Pareceu-me tudo fantástico, pena foi não estado presente. Foi uma resposta muito poética e feita depois do jogo, para não lhes dar a importância que procuram. Foi dizer-lhe que o mais queremos é a liberdade, a revolução dos cravos é algo que sempre fazemos questão de festejar. Vigo adota Portugal como pátria. Foi formidável", expressa o ator.
"Andava de táxi em Sevilha e diziam-me que o Celta tinha recuperado de desvantagem de dois golos. Mais tarde tenho a alegria de saber que ganhou e depois do resto. Foram ágeis, não sei quem o pensou mas resultou perfeitamente. A revolução de Abril é um exemplo para nós", reforça Morris.
"O Celta entrou numa linha de comunicar muito bonita, os adeptos estão a aproximar-se muito, vemos a força da cantera na equipa. Há uma união fortíssima e por alguma razão temos nos Balaídos 23 dos nossos 28 pontos", relata, entrando no lado mais pessoal de "Grândola Vila Morena"
"Sempre que a escuto fico em pele de galinha. Quando era novo, quando se dá o golpe, até tive intenção de vir para Portugal. Houve uma época de militância política que a música soava em todos os lados. Zeca era queridíssimo de todos! Grândola é formidável, é uma música paralela ao nosso hino e a revolução dos cravos é uma revolução irmã", elucida o prolífero ator, celtista de toda a vida.
"Cheguei a Vigo ontem e essa vitória foi além dos três pontos. Para todos foi uma tarde inolvidável, pela remontada e por Grândola. Para nós vigueses, Portugal é como nosso, a fronteira de Tui não existe", enfatiza Morris.
"Celta e FC Porto deviam jogar em todas as pré-temporadas"
Alfonso Pato, diretor de um festival de cinema na Galiza, enaltece a inteligência da mensagem e lembra concerto de homenagem em Vigo a Zeca; pede maior atenção ao Celta em potenciar a relação do outro lado da fronteira. Por falar em música, nada melhor que citar Siniestro Total 'Menos mal que nos Queda Portugal'
Em Porriño, concelho próximo de Portugal, na viagem de Valença para Vigo, Alfonso Pato, diretor do festival de cinema de Cans, que usa o nome da terra para uma analogia com as datas de Cannes, fazendo de um certo agroglamour a essência marcante do evento, também rejubilou na alma pelo que viu e pelo ruído pós-vitória sobre o Bétis.
"Foi uma resposta muito inteligente, porque eles estavam ali sozinhos, num estádio já quase vazio. Esteve muito bem o Celta, dentro do que tem sido a sua comunicação no último ano e meio. Há um registo mais identitário, mais próximo do povo, dos adeptos. E foi algo que se espalhou pelas redes, nem foi tanto o clube a assumir a frente", conta, analisando o problema na sua raiz. "Tem havido muita difusão de fascistas nos estádios, sejam as saudações, os gritos. Passeam impunes pelas cidades a provocar e a arremessar cadeiras.. Penso que a nossa Liga de Futebol é demasiado branda com fascismo, machismo e racismo. Talvez porque Javier Tebas, o seu presidente, não esconda as suas ideias como apoiante do VOX", observa Alfonso Pato, partilhando a sua leitura da subtileza do Grândola Vila Morena naquele instante sonoro.
"Tem um valor específico muito forte na Galiza, se passasse em qualquer outro estádio de Espanha não teria tanto comprometimento. Em Vigo Zeca teve muitos amigos e fez-se um festival em sua homenagem antes de morrer. Foi na Galiza, em Santiago de Compostela, que cantou Grândola pela primeira vez. Depois foi algo com grande repercussão nas redes em Portugal, muitos partilharam o vídeo, foi um ressalto potente do tema, trouxe o foco da nossa relação mais para cima. Deu-se um eco enorme sobre este sentimento antifascista", precisa Alfonso Pato, apreciando e sugerindo um novo enquadramento entre o Celta e Portugal.
"Acho que devíamos viver mais de frente e menos de costas para Portugal. O clube e outras empresas devem procurar maior implantação. O Celta deve trabalhar os adeptos portugueses do norte, não há uma relação fluída que podia haver. Devia institucionalizar-se um jogo de pré-época entre o Celta e o FC Porto, um ano em Vigo, outro ano no Porto. Seria bonito para ambas as partes. Tem de se prestar outra atenção ao que representa Portugal e o mundo lusófono e o potencial social, cultural e económico que daí pode advir. Já que somos os portugueses, assim chamados na Corunha, temos de estabelecer essa relação. A nossa presidente, que sei que vai comer muitas vezes a Portugal, deve fazer algo mais do que apenas dizermos 'como nos gusta Portugal'. Espero um plano real", atira.
"Muitos entendemos que Portugal poderia cuidar melhor da nossa história que Espanha"
Kaixo, rapper e produtor galego, é celtista dos sete costados, rendido às afinidades luso-galaicas, à expressão do Grândola como música de uma liberdade conquistada que sempre foi inspiradora na Galiza. A perceção dos pontos de contacto de quem viveu no Porto
Por fim, uma conversa com Kaixo, um rapper galego, afincado ao Celta, um criador musical que se licenciou no Porto em Cinema. Também ele é contundente sobre a satisfação plena que jorrou da sucessão de méritos do último fim-de-semana celtista. Os aplausos vão mesmo na direção do compromisso por um posicionamento político e social. "Sempre devemos ter uma resposta firme ao fascismo, seja no desporto ou na vida. Temos de ser contra os pensamentos anti-humanista, que, por desgraça, se apoderaram de tantas claques, através desses grupos de extrema-direita. A resposta que vimos foi absolutamente necessária e muito bonita. Pegaram em algo tão representativo como o Grândola, que colhe as almas e corações de um povo tão sofredor como o galego. Nessa música está a união de quem rejeitou o franquismo e salazarismo", opina Kaixo, guiado por sinais encorajadores também do Celta para com os seus.
"Vejo um trabalho incrível para chamar gente mais nova, envolvendo a cultura galega, promovendo atuações antes dos jogos, muita animação. A música foi uma jogada muito inteligente da megafonia do estádio, temos gente divertida e engraçada nessas funções, que sabe o que oferecer na pista de baile! Fizeram-no de forma bestial. Antes eram os fãs que tratavam das coisas do seu jeito mas vieram ações policiais muito repressivas. Esta foi a forma de dizer a estes animais que não podem vir a um estádio e não respeitar a gente do Celta", explana Kaixo, mergulhando nos laços afetivos que relacionam dois povos preenchidos por uma conversa fácil e diferenças ténues no idioma.
"Somos os irmãos do norte de Portugal, a história de Portugal é como nossa. O Grândola foi muito importante para a geração dos meus pais, um canto à liberdade e luta de um povo oprimido contra o poder. Algo que nós só podemos aspirar, porque entendemos que ainda existe essa opressão do estado espanhol a nós. Muitos entendemos que Portugal poderia cuidar melhor da nossa história do que Espanha", avalia o intérprete nascido em Vigo, que se recria musicalmente entre o hip-hop e ramificações eletrónicas e o punk rock. "Temos pontos de contacto na língua, cultura e estilo de vida. Morava no Porto e os meus amigos entendiam Grãndola como uma cena presente mas de tempos passados. Lembravam com orgulho mas preferiam ouvir Idles, o que diz muito da evolução de um povo que avança para o futuro sem esquecer de onde vem", atesta o rapper, fervendo por uma proximidade que só pode crescer mais.
"Nas injustiças arbitrais sempre dizíamos que devíamos ir para a Liga Portuguesa e esquecer a Espanhola. É uma brincadeira, mas, por vezes, até o falamos a sério. Esta relação ainda tem muito por onde evoluir, mais ainda se falarmos do sul da Galiza, onde o Celta é a referência desportiva por excelência, podemos potenciar laços de amor entre os portugueses e uma equipa que transcenda o futebol. Acho que os únicos portugueses que não gostam do Celta são os do Benfica. Tinha um amigo do Sporting, que sempre que me via, nem dizia 'olá', era apenas 7-0. Que viva o amor entre Portugal, Galiza e o Celta. E que o Grândola perdure nos nossos corações e gargantas."