MELHOR ARGUMENTO MELHOR ARGUMENTO ORIGINAL - De inimigo a pária e de pária a herói, o alemão (e ex-nazi) Bert Trautmann integra o Hall of Fame do futebol inglês desde 2005. No ano anterior fora nomeado oficial honorário da Ordem do Império Britânico, por promover o futebol e a concórdia anglo-alemã
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Imagine o leitor a história de um jovem alemão que cresce ao ritmo da ascensão de Hitler, se torna pára-quedista ao serviço do Terceiro Reich, luta nos mais variados cenários de guerra, é feito prisioneiro pelo inimigo inglês e, depois, descoberto pela filha do presidente de um pequeno clube sediado nas imediações do campo para onde é enviado. Agora, imagine que essa rapariga insiste que o pai veja o rapaz jogar à bola - ele é guarda-redes -, que o pai da rapariga consegue tirar o rapaz do campo para o fazer jogador do seu clube, o pequeno St. Helen"s Town, e que, em menos de um ano, o rapaz não só se casa com a rapariga, como é transferido para o poderoso Manchester City, para o qual vem a assegurar a vitória na FA Cup imediatamente depois de ter fraturado o pescoço. E agora imagine ainda que a relação entre esse rapaz e essa rapariga, apaixonados um pelo outro, ainda terá de tentar vencer um último obstáculo, aliás mais difícil do que todos os outros até aí...
Dava um filme? Evidentemente que dava, mesmo que se se tratasse de ficção. Só que é realidade. Aconteceu com Bert Trautmann (1923-2013), e talvez nenhuma outra história de futebol seja tão talhada para o cinema: é uma história de amor, é uma história de heroísmo e é também uma história decorrida sobre o pano de fundo do mais mortífero e apaixonante conflito militar da História. Portanto, deu mesmo um filme. Trautmann, também conhecido por The Keeper, estreou em Inglaterra no ano passado, com realização de Marcus H. Rosenmüller e os atores David Kross (Bert) e Freya Mavor (Margaret) nos principais papéis. Mas continua - como se costuma dizer na gíria da distribuição do cinema - perdido em combate, sem data de (e aparentemente sem planos para) estreia entre nós.
Bert Trautmann nasceu em 1923, na cidade industrial de Bremen. Aos dez anos, juntou-se às fileiras daquela que, mais tarde, seria conhecida por Juventude Hitleriana. Ainda adolescente, aderiu à Luftwaffe como pára-quedista.
Bert Trautmann nasceu em 1923, na cidade industrial de Bremen. Aos dez anos, juntou-se às fileiras daquela que, mais tarde, seria conhecida por Juventude Hitleriana. Ainda adolescente, aderiu à Luftwaffe como pára-quedista. Esteve estacionado na Polónia, cumpriu três meses de cadeia por uma piada que correu mal (o que não o impediu de ser condecorado com uma Cruz de Ferro pelas autoridades de Berlim), foi transferido para a Ucrânia - e, depois de escapar sucessivamente a inimigos soviéticos, franceses e americanos, caiu, enfim, nas mãos dos ingleses. Primeiro, foi catalogado como um prisioneiro de Categoria C, visto o passado na Juventude Hitleriana e o facto de ter aderido às forças armadas como voluntário. Mas provou-se bem-comportado, acabando por baixar para a Categoria B, o que lhe permitiu ficar em campos de prisioneiros mais permissivos, primeiro perto de Liverpool e depois no condado do Lancashire.
Entretanto, a guerra acabou e os prisioneiros ganharam alguma liberdade, podendo integrar-se um pouco nas comunidades locais. Em 1948, Bert recebeu finalmente autorização para ser repatriado para a Alemanha. Mas rejeitou-a. Estava a gostar de viver em Inglaterra, onde, apesar da desconfiança generalizada em relação a qualquer alemão, ademais com passado nazi, trabalhava como camponês e já tinha até a sua equipa de futebol amador. Foi então que a jovem Margaret o viu jogar, com os antigos colegas do campo, e ainda no espaço deste (onde continuava a viver). Ter-se-á apaixonado de imediato, o que pode ser verdade ou ficção, mas em todo o caso insistiu que o pai, presidente do pequeno St. Helens Town FC, o fosse ver. Este gostou, arranjou-lhe uma habitação e fez dele guarda-redes do clube. Ao fim de um ano apenas, o Manchester City foi buscá-lo.
A primeira reação dos adeptos do City, muitos deles judeus, foi explosiva: como era possível, um nazi no seu clube?! Mas Bert Trautmann jogava tão bem e - principalmente - parecia tão redimido dos seus crimes que, devagar, a massa associativa se foi convencendo a dar-lhe uma oportunidade. O alemão acabou por ficar 15 anos. E um dia houve em que foi, não apenas um dos autores de um feito razoável, mas o supremo herói de uma conquista: a vitória na FA Cup de 1956. O adversário era o Birmingham, o estádio o de Wembley, com mais de cem mil espectadores nas bancadas. Aos 73 minutos, com o resultado em 3-1 para a equipa de Manchester, Bert saiu aos pés do avançado Peter Murphy e levou uma joelhada no pescoço. Perdeu de imediato os sentidos. Só que ainda não havia direito a substituições, pelo que apenas restava ao médico do City tentar reanimá-lo. E Trautmann não só acordou, como continuou.
Naqueles 17 minutos, e vendo o adversário vulnerabilizado, os jogadores do Birmingham chutaram de todo o lado. Trautmann, com o pescoço visivelmente torto, defendeu tudo, acabando o dia carregado em ombros ao redor do estádio pelos colegas. Não surpreendentemente, continuou a ter dores no pescoço. E, quando ao fim de alguns dias foi fazer exames, viu ser-lhe detetada uma fratura.
A relação com Margaret e o tal obstáculo superior que se lhe ergueu em frente? Essa é outra história ainda: três filhos, um deles falecido num acidente e um divórcio por incapacidade do casal em lidar, em conjunto, com aquela perda. Talvez acabe por ser ela a convencer a nossa distribuição de cinema a fazer o seu trabalho...