Há três clientes habituais da Champions que contrataram jogadores do Japão pela primeira vez na história. Prevê-se que este mercado seja uma via de dois sentidos cada vez mais atrativa para os europeus.
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Takefusa Kubo e Hiroki Abe são apostas de futuro de, respetivamente, Real Madrid e Barcelona; Shoya Nakajima voltou à Europa para representar o FC Porto e Daizen Maeda vai vestir a camisola do Marítimo. São quatro transferências protagonizadas por jogadores japoneses neste defeso e por clubes que nunca tinham apostado nessa nacionalidade nas respetivas equipas seniores - Kubo representou o Barça apenas nas camadas jovens.
Alemanha (25), Holanda (20) e Bélgica (18) estão entre as ligas europeias por onde mais japoneses passaram. Em Portugal, o Portimonense reacendeu o interesse
O tempo dirá o quão bem sucedidas estas apostas foram, mas, para já, servem de exemplo de uma mudança de paradigma: lenta mas consistentemente, o jogador japonês ganha espaço na Europa e já nem tanto pelo aspeto comercial ou pelo marketing, embora essa vertente nunca seja negligenciável, a exemplo do que admitiu Carlos Pereira, presidente do Marítimo, com a chegada do internacional nipónico Maeda: "Vai fortalecer o nome do clube fora da região."
Alemanha (25), Holanda (20) e Bélgica (18) estão entre os países europeus que mais japoneses tiveram nos seus principais campeonatos, mas eles estão a chegar a todo o lado, na nacionalidade asiática mais representada no futebol europeu. Nas últimas cinco épocas, a I Liga recebeu quatro japoneses, outros quatro chegaram a Espanha e a Inglaterra e três a França.
Esta aposta, no entanto, não chega por acaso. É o reflexo de um plano paciente, ambicioso e pormenorizado que tenta projetar o futebol nipónico para o topo.
Hugo Vieira explica os pontos fortes do Japão e de Kubo, o amigo que passou por La Masia, mas é aposta do Real
Missão top 4 e Mundial
No Japão trabalha-se em nome de dois grandes objetivos: fazer do campeonato, a J-League, a quarta liga mundial até 2030 e conquistar um Mundial até 2050. Se isto parece demasiado, acrescente-se este facto: mais de 50% da população japonesa não se interessa por futebol. O desporto rei é o basebol e as artes marciais ocupam lugar de destaque.
A estratégia assenta em dois princípios fundamentais: saúde financeira e desenvolvimento de jogadores. Por agora, os participantes na J-League, criada em 1992 e sucessivamente reformulada, têm de ser autossustentáveis e não podem adotar nomes de empresas. "O interesse das empresas vai e vem, nós queremos clubes com projetos de futuro", explicou recentemente Mitsuru Murai, presidente da J-League. Todos os anos, há quase 400 atividades direcionadas para as comunidades locais promovidas pelos clubes e, em nome do futuro, os nipónicos estão obrigados a desenvolver uma academia com, pelo menos, um plantel de sub-15 e outro de sub-18. Em cada jogo têm de utilizar dois jogadores formados no clube e um com menos de 21 anos, com a garantia de que a formação de futebolistas vai influenciar a distribuição dos direitos televisivos. Quanto a estrangeiros, estão limitados a cinco na ficha de jogo.
"Surpreendeu-me o nível do futebol. É um campeonato muito forte, com jogadores fortes tecnicamente, ágeis e rápidos. O Kubo é um craque"
Entre 2017 e 2018, Hugo Vieira foi um desses estrangeiros no Japão, ao serviço do Yokohama Marinos, e não poderia ter ficado com melhor impressão. "Fiquei muito surpreendido com o nível do futebol de lá. É um campeonato muito forte, com jogadores de muita qualidade; são fortes tecnicamente, ágeis e muito rápidos", descreveu a O JOGO o avançado agora ao serviço dos turcos do Sivasspor. "Os treinadores é que ainda estão num processo de crescimento e evolução", ressalva Hugo Vieira, que acha os ambiciosos objetivos traçados pelos nipónicos concretizáveis: "Sem dúvida alguma. Se eles tivessem um bocadinho mais de experiência, ou manha, tinham chegado às meias-finais do último Mundial. Mas acho que no Catar vão atingir essa meta."
Nem de propósito, Hugo é amigo de Takefusa Kubo, o médio de 18 anos que desperta cada vez mais curiosidade em Espanha; foi contratado para o Castilla (Real Madrid B), mas o português acredita que o amigo "vai fazer alguns jogos pela equipa principal".
"O Abe pode ser importante no Barça, não foi uma decisão comercial. Vamos ver cada vez mais japoneses na Europa"
"É um craque, pode ser muito importante para desbloquear jogos", justifica Hugo Vieira, convicto de que o mercado japonês vai estar cada vez mais presente no radar dos clubes europeus, numa opinião semelhante à de Josep Maria Bartomeu, presidente do Barcelona que deposita esperanças na sua pérola, Hiroki Abe, e não guarda rancor a Kubo: estava nas escolas do Barcelona, voltou ao Japão por imposição da FIFA e regressou a Espanha pela porta do Real Madrid. "O Abe tem capacidade para ser importante na equipa, foi uma decisão desportiva e não comercial. Tenho a certeza de que cada vez mais japoneses irão para a Europa e mais europeus para o Japão, será algo normal. Pessoalmente, fico feliz por o Kubo jogar no Real Madrid", afirmou o dirigente, na sexta-feira.
Uma questão de valores
Depois de uma primeira fase que teve, entre outros, Arsène Wenger, Carlos Queiroz ou Paulo Futre, a J-League esmoreceu um pouco e voltou agora em força. Andrés Iniesta, Fernando Torres e David Villa são exemplos de europeus notáveis que escolheram o Japão para os últimos anos na carreira, numa ideia que até nem foi potenciada pela Direção da J-League, mas não deixa de ser bem-vinda pelo retorno desportivo e financeiro que jogadores deste estatuto garantem.
Não obstante, os nipónicos querem ser mais do que um local agradável para a "reforma" e têm os seus argumentos. Os estádios, modernos e funcionais, enchem para as partidas e não há registo de episódios violentos, jogos viciados ou apostas ilegais. Perguntámos a Hugo Vieira se, com tanto investimento e ambição, não haveria exemplos de descontrolo que originassem salários em atraso e a resposta, por escrito, merece ser reproduzida na íntegra: "Ahahahah! Impossível um dia de atraso! Se dia 25 for um domingo, pagam no dia 23."
No âmbito inverso, os clubes europeus sabem que no jogador japonês encontrarão um atleta dedicado e responsável, como é apanágio da cultura daquele país. "Revejo-me na forma de ser e de estar. Já tive problemas por ser assim, mas prefiro ser uma boa pessoa do que um melhor jogador", concluiu Hugo Vieira.
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