A seleção nacional da RDA foi dissolvida há 30 anos. Depois de Matthias Sammer assinar com golos o último ato em campo, foi negada à turma oriental um último desejo, já com a reunificação assinada. Para trás, ficou uma certa noite em Hamburgo, quando o ideal comunista marcou um golo fratricida
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O muro de Berlim caiu - ou começou tecnicamente a cair - a 9 de novembro de 1989, mas nem tudo o que era República Democrática da Alemanha (RDA) caiu com ele. Já com a Alemanha reunificada, uma equipa parecia recusar-se a morrer a morte que lhe estava destinada. Era a seleção nacional da Alemanha de Leste, uma equipa quis cair de pé, mesmo que fosse de forma amigável.
À "campeã mundial de jogos amigáveis" foi-lhe negado o último desejo de novo jogo amigável
A 12 de setembro de 1990, os ministros dos negócios estrangeiros das duas Alemanhas reuniram-se em Moscovo com representantes de Estados Unidos, União Soviética, França e Reino Unido, países que ocuparam o território germânico após a II Guerra Mundial.
Ali se ratificou a reunificação, mas nesse mesmo dia, já depois de todos seguirem o seu caminho e deixarem a cerimónia com a tinta das assinaturas ainda a secar no acordo, a seleção nacional da Alemanha Oriental media forças em Bruxelas perante a Bélgica. Tudo para honrar o encontro de qualificação para o Euro"92.
Contudo, a política e a lógica tornaram o duelo num encontro de caráter amigável. Nunca iria haver tal coisa como RDA na prova que se disputaria na Suécia. Muitos jogadores acharam um disparate comparecer. Outros foram. E esses que foram deram tudo. Ganharam 2-0. Matthias Sammer (esse mesmo...) marcou os dois últimos golos do leste germânico. Esta foi a morte em campo. A vencer. A outra veio em novembro, há 30 anos.
Sem nunca se ter apurado para um Europeu, a RDA qualificou-se apenas para um Mundial: o de 1974
Antes de o tal Matthias Sammer se transferir para o Estugarda e ajudar a equipa a sagrar-se primeira campeã da Alemanha reunificada - tornando-se depois num brilhante internacional de um país agora inteiro -, a Alemanha Oriental ainda tinha algo por que viver, mas já lá vamos. Antes, há quase 40 anos de aventuras por contar.
Formada em 1949 e aceite na FIFA como membro três anos depois, a Deutscher Fussball Verband der DDR (Associação de Futebol da República Democrática da Alemanha) teve a sua estreia num amigável frente à Polónia, em Varsóvia (derrota por 3-0), justamente o tipo de jogo que lhe iria marcar a existência.
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Agora vizinha incómoda, a República Federal da Alemanha via a sua equipa nacional sagrar-se campeã mundial em 1954, gerando uma euforia maior em torno do desporto-rei, razão pela qual o irmão desavindo de leste decidiu competir a nível oficial, inscrevendo-se para participar na qualificação para o Mundial seguinte, na Suécia.
Apesar do início auspicioso causado pela vitória caseira (1-0) em Leipzig, que contou com uma tremenda assistência - relatos mais inflamados apontavam para 120 mil nas bancadas do Zentralstadion -, a carreira da RDA em fases finais acabaria por ser quase inexistente. Quase...
Sem nunca se ter apurado para um Europeu, a Alemanha socialista qualificou-se apenas para um Mundial, justamente o de 1974, disputado na Alemanha federal, e aí jogou o seu mais famoso encontro de sempre: a famosa "kampf zwischen brüdern" (luta entre irmãos). As duas Alemanhas desafiaram-se noutros palcos, inclusivamente a nível olímpico, mas este foi o único embate a mais alto nível jogado oficialmente entre ambas.
Com a Guerra Fria como pano de fundo, a partida jogada a 22 de junho de 1974 em Hamburgo envolvia o concreto do Muro de Berlim, o arame farpado, uma miríade de feridas abertas entre um povo alemão dividido e tornado adversário. A tensão e a carga política era imensas. A surpreendente vitória da formação de leste foi obra e graça de um golo solitário anotado por Sparwasser (que mais tarde fugiria para o Ocidente), revelando-se tão histórica quanto pírrica.
Comandada por Helmut Schoen, um alemão de leste que estava fadado para ser o cérebro do futebol da RDA antes de preferir a vida a Oeste nos anos 1950, a turma da RFA sagrou-se eventual campeã sobre a "uber-favorita" Holanda de Cruyff e a Oriental ficou-se por segunda fase de grupos.
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A Alemanha de Leste tornar-se-ia desportivamente famosa noutras disciplinas, pisos e arenas, onde o estado "exigia" vitórias como forma de afirmação internacional, subsidiando um programa de doping que deixou um infame rasto de polémica e vítimas. Nem mesmo o ouro olímpico conquistado pelo futebol da RDA em 1976 foi capaz de devolver o fogo fátuo causado pela noite de Hamburgo.
Depois de anos de escuridão, a Alemanha de Leste - que nunca chegou a ter um estádio próprio, em sentido inverso às outras equipas nacionais dos países do bloco socialista - tinha, ironicamente, dos seus mais fortes esquadrões de sempre aquando da sua dissolução. Tinha estado até a um empate de se apurar para o Mundial de 1990, mas os distúrbios causados pela queda do muro de Berlim interromperam-lhe a atividade em 1989.
A esperança por esse final poético selado com um abraço entre os novamente irmãos era considerável
Com a reunificação a tirar-lhe o último sopro de ar das velas, a equipa da RDA tinha como jogo seguinte no calendário, após bater a Bélgica, um novo reencontro com a RFA. Tal como no caso diante dos belgas, o encontro já não seria de apuramento, mas sim novo amigável como último ato do leste germânico enquanto selecionado.
A esperança por esse final poético selado com um abraço entre os novamente irmãos era considerável. Afinal, a Oberliga, o campeonato de clubes do leste germânico, ainda seria jogado em 1990/91 - foi ganho pelo Hansa Rostock. Porém, a novembro de 1990, a agitação social e a anarquia grassavam pelo território de leste, pelo que foi decidido cancelar o desafio a fim de evitar mais distúrbios. Era preciso ajudar a garantir o descanso eterno da República Democrática da Alemanha.
À equipa azul que tinha a alcunha de "campeã mundial de jogos amigáveis" foi-lhe negado o último desejo de novo jogo amigável... e morreu para sempre.