"Maradona era um menino de rua napolitano nascido, por acaso, em Buenos Aires"
A cidade que hoje acolhe o Braga respira futebol como poucas, num ambiente de loucura fermentado pelo génio de Maradona, imortalizado por todos os cantos. Retrato acompanhado por conversas com Palummela, o ultra de Maradona, Gigi de Fiore e Giordano, campeão em 1987.
Corpo do artigo
Há o efeito Maradona para fintar, há loucura e génio para rebater e uma sufocante paixão para domar. Joga-se contra um poder maior, um Deus omnipotente e uma sobrecarga vulcânica de alertas e emoções. Incendeia-se também a paixão por fazer história. Nápoles é, em qualquer circunstância, um caldeirão de pólvora e ruído, uma cidade constantemente possuída por energias catárticas, azáfama transbordante e uma identidade imutável, capaz de secar qualquer outra onda galvanizante que espreite espaço nos seus domínios. Terá sido o astro argentino a revolucionar tudo isto, a inculcar o amor próprio e a afronta aos poderosos. O futebol foi uma alavanca social, nos anos oitenta, de uma cidade que era pontuada por notícias de foro criminal, mesmo com a tradição das pizzas, das vespas frenéticas, e uma musa chamada Sophia Loren.
Gennaro Muntuori, conhecido com Palummella, foi o mítico chefe dos Ultras. Chamado de Ultra de Maradona pela ligação estreita e familiar que mantiveram. Tinha 29 anos quando comemorou o título de 1987. Aceitou falar com O JOGO, sem qualquer dúvida sobre quem foi o responsável pela unidade dos napolitanos, herdada por gerações que nem sequer viram o homem da mão de Deus em ação.
“O título de 1987 foi o mais bonito. Foi o primeiro, nunca havia vencido, aí está o impacto e o efeito psicológico de termos ganho com o maior de todos os tempos”, expressa Palummella, um dos protagonistas de um documentário recente que percorreu esses tempos áureos.
“Nápoles é outra coisa para qualquer jogador! Passam-te uma energia única. E têm de se orgulhar disso, é como Sivorí disse: ‘jogador que não passar por Nápoles não entende o real significado de jogar futebol’. Nápoles é particular, tira o fôlego, mas também te invade a alma, é uma carga emocional incrível. É amor! É um clube de fãs extraordinários, hoje mais fortes na cidade do que nas bancadas; mais importantes na rua, porque querem abraçar o jogador e este já não os abraça como antes. Mas a cidade imortaliza os seus campeões, mesmo sem o amor de antes, agora há mais selfies, é tudo mais tecnológico”, lamenta Gennaro Montuori.
Gigi di Fiore, autor do livro “Storia del Napoli, una Squadra, una Cittá’, também nos envolve por esse arrebatamento dos sentidos, a cumplicidade mais estreita que o fenómeno futebolístico pode granjear. “A relação foi sempre forte, mas Maradona elevou ao mais alto nível a união entre a equipa e a cidade, demonstrando que também aqui é possível vencer, que é possível prevalecer sobre o excessivo poder económico e futebolístico dos grandes do norte. Maradona era um menino de rua napolitano nascido, por acaso, em Buenos Aires. Entendia melhor do que muitos como o povo desta cidade procurava constantemente a redenção, para se sentir vitorioso e importante, mesmo num campo de futebol”, vinca, orgulhoso dos murais, das pinturas e de toda a adulação intemporal a Diego, património de uma cidade.
“A equipa confunde-se com a vida da cidade, refletindo uma identidade sulista, uma paixão que une diferentes classes. Esta paixão pelo futebol produz economias de mercado negro, mas também cultura, eventos artísticos, fluxos turísticos, tornando-se, por vezes, uma alegre obsessão, como esta última comemoração do ‘scudetto’”, acrescenta, enfatizando esse fervor esmagador e quase irreal.
“Nápoles é uma das poucas metrópoles italianas só com uma equipa, a claque tem uma conotação e tradição identitária ligada a um território específico, mas os adeptos napolitanos estão em todo o mundo, fruto de muita emigração. O Nápoles sempre encarnou a ideia futebolística de todo o sul, a equipa sobrepõe-se à cidade, o que é não raras vezes sufocante para os jogadores, rodeados de um apoio abrangente, que lhes exige fé, dedicação e amor.”
Vínculo indestrutível ao título de 1987
Bruno Giordano, homem grande da história do Nápoles, que fez parte do tridente Ma-Gi-Ca com Maradona e Careca em 1987, exalta esse sentimento de resposta a um contexto amargo e vicissitudes desafiantes.
“Foi maravilhoso concretizar esse título em 1987, foi uma festa e uma desforra de todo o povo napolitano, que vivia triste. Foi algo que transcendeu a esfera desportiva, teve um aspeto social. Foi realmente bonito!”, exorta. “Falamos de uma cidade maltratada. Nas conquistas, como a mais recente, enlouquece e muda de cor, está pintada de azul, não se conseguem ver outras cores”, conta.
“As sensações do primeiro campeonato ganho pelo Nápoles são irrepetíveis, superiores a tudo, mesmo que eu ainda espere muitos outros títulos para o Nápoles. Ainda hoje se fala de 1987, as emoções no campo foram iguais às que atravessaram a cidade. Qualquer napolitano em qualquer parte do mundo, seja de que geração for, saberá falar desse título. Há um vínculo indestrutível de todos os que aí estiveram”, remata.