Jogador do Sudão recorda morte do melhor amigo: "Dispararam mais de 20 ou 25 vezes"

John Mano
Instagram/Reprodução
John Mano revelou a forma chocante como o seu melhor amigo Medo se tornou uma de mais de 150 mil vítimas da guerra civil que decorre no seu país desde 2023
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John Mano, que se encontra a representar o Sudão na Taça das Nações Africanas (CAN) de 2025, revelou esta segunda-feira, num relato chocante, a forma como Medo, o seu melhor amigo, foi assassinado enquanto tentava arranjar documentos para fugir à guerra civil que decorre no seu país desde 2023.
"Nem sequer lhe deram uma chance. Dispararam contra ele mais de 20 ou 25 vezes. Um dos nossos amigos de infância também estava com eles, mas não pôde dizer nada. Então, viu apenas o nosso amigo a morrer em frente aos seus olhos", contou o jogador, de 24 anos, à BBC.
Mano explicou que este desfecho trágico de Medo, que se tornou numa de mais de 150 mil vítimas de uma guerra entre o exército do Sudão e o grupo paramilitar Forças de Suporte Rápido (RSF), surgiu enquanto o melhor amigo tentava fugir para o Egito, no âmbito de um conflito civil que já obrigou mais de 12 milhões de pessoas a fugirem das suas casas.
"Penso que eles se esqueceram de alguns certificados. Eram muito importantes para a sua família e ele teve de voltar. Voltou a sua casa e levou tudo. Foi apanhado. Eles disseram: 'Estás a trabalhar com o exército?' Ele só queria explicar-se, mas eles começaram a disparar", relatou.
Com estádios destruídos pela guerra e o campeonato suspenso indefinidamente - os dois maiores clubes do país (Al Hilal e Al Merrikh) encontram-se a competir no Ruanda -, Mano lamenta o estado do futebol do Sudão, mas recusa-se a reclamar: "Não temos uma liga, não temos nada, mas não podemos queixar-nos, porque as pessoas no meu país não podem comer, não têm comida".
Mano revelou ainda uma ameaça de morte que recebeu antes de fugir do seu país para a Líbia, onde joga atualmente pelo Al Akhdar: "Os rebeldes costumavam parar-nos na estrada e gozavam connosco. Diziam coisas como 'Tu jogas pelo Al Hilal, o que é o Al Hilal? Eu torço pelo Al Merrikh. Posso matar-te agora mesmo e ninguém me vai questionar'. Não consigo esquecer esta história até que morra".
Também à BBC, o selecionador do Sudão, o ganês Kwesi Appiah, explicou que teve de convencer os jogadores da seleção, que chegou à fase final da CAN pela quarta vez da sua história mesmo jogando os seus encontros caseiros da qualificação em terreno neutro, a competirem sem garantias de pagamento, tendo ainda a difícil tarefa de os consolar quando morrem familiares.
"Tentamos fazer com que os jogadores saibam que, mesmo que [esses familiares] tenham partido, estão a olhar para eles e para aquilo que podem fazer neste momento pela sua nação. Talvez precise de dar a esse jogador dois ou três dias de folga para me certificar de que volta a si próprio", referiu.
Nesse contexto, o lateral-esquerdo e capitão do Sudão, Bakhit Khamis, falou sobre a forma como a sua seleção tenta criar um espírito de família no balneário, de forma a que o futebol ajude os jogadores a "esquecerem", nem que seja por momentos, o trágico estado em que se encontra o seu país.
"O futebol é o alívio que temos enquanto povo sudanês. É a única coisa que nos deixa felizes e que nos ajuda a esquecer a dor e o sofrimento que temos passado neste período de guerra. O sentimento de união torna-se parte de ti, não consegues evitá-lo. O nosso objetivo tornou-se mais forte: Sudão em primeiro, Sudão acima de tudo. A união é uma das melhores coisas que nos aconteceu, permitiu-nos que nos uníssemos como se fôssemos uma pessoa", enalteceu.
Desejando o fim da guerra, o selecionador lembrou ainda a forma como uma vitória sobre o Gana na qualificação para a CAN - em que o Sudão também já venceu a Guiné Equatorial (1-0), podendo apurar-se para os "oitavos" - teve um efeito pacífico nos soldados do país.
"Pelo menos por um dia, eles baixaram as armas. Acredito que, se por graça conseguirmos vencer [a CAN]... nunca se sabe", atirou, com Mano a reforçar: "Alguns [dos adeptos sudaneses] não conseguem ver os jogos, nem sequer podem ouvir [os relatos] na rádio. Todos os dias morrem pessoas. Estamos a tentar libertar o nosso país através do futebol".

