Simundza foi o técnico que potenciou no Maribor o renascimento do antigo craque da Atalanta. A O JOGO partilhou todas as emoções da grande vitória da vida do avançado sobre uma profunda depressão. Atacante é uma figura inspiradora por estar presente na Alemanha. Tem lutado por atropelar traumas e fantasmas
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Com 9 golos e 12 assistências, e 36 jogos feitos pelo Maribor, Josip Ilicic aproximou-se do jogador extraordinário que foi durante largos anos no Calcio, povoou durante 11 temporadas a prestigiante Serie A com o seu talento explosivo e contundência no último terço. Brilhou no Palermo, Fiorentina e rebentou a escala na grande Atalanta de Gasperini. Fez 122 golos em Itália.
Na sua melhor época, em 2019/20, marcou 21 golos em 34 jogos, maravilhou a Europa com um póquer em Valência num 3-4 na Champions, que valeu o salto para os quartos de final. De seguida, fita quase instantânea, a visão demolidora do melhor Ilicic de sempre evaporou-se nas malhas mais complexas de desfazer, as de uma implacável depressão, difícil de decifrar e combater, não sendo a cabeça passível do mesmo spray milagroso que alivia a dor de uma pancada num joelho.
Eram tempos de pandemia, de reclusão e medo, e Bérgamo era epicentro europeu de uma escalada da contaminação por Covid-19 com uma mortandade terrível na cidade que tanto ama a Dea, diminutivo da Atalanta.
As sirenes das ambulâncias ecoavam, formavam uma banda sonora tenebrosa e eram a expressão de uma calamidade sem precedentes para a saúde pública. Ilicic, marcado de infância, ainda sem um ano de vida, pela morte do pai na guerra da Jugoslávia, que levou à fuga da família da Bósnia para a Eslovénia, murchou neste cenário, atirado para um buraco negro, alarmado pelas notícias, por ter sido infetado, por estar privado de contacto e por o futebol ter parado. Foram meses que o transformaram, demónios acordaram, e já não o foi mesmo no regresso do Calcio. Isolado, longe de tudo, mergulhado nas profundezas da mente. Foi amparado pelo grupo, homenageado na última jornada diante do Inter, quando todos os colegas saltaram para o campo com o seu nome gravado nas costas.
Com ajuda especializada e vontade própria, Ilicic, que também sentiu muito em 2018 a morte súbita do amigo Astori, recuperou parte da alegria na época seguinte, utilizando um refúgio na Eslovénia como terapia, mas seria amarrado novamente pela depressão em 2021/22, vazio de respostas para ela, emagrecendo e penando nessa “selva da mente”, como descreveu Gasperini no balanço de uma visita ao esloveno no hospital. A sua luta para despistar tamanhos fantasmas à solta trouxe-o de volta à ação dentro das suas fronteiras, conseguindo limpar o astral nesta segunda época no Maribor, recuperado por Ante Simundza, seu treinador, e também por Matjaz Kek, selecionador da Eslovénia, que brindou Ilicic com chamada ao Europeu e já um presente de 15 minutos contra a Inglaterra.
Agora segue-se Portugal no caminho. O JOGO teve oportunidade de entender este renascimento de um grande jogador, aos 36 anos, falando com Ante Simundza. “Fez um final de temporada muito bom, quando cheguei em outubro não estava em boa forma física. Trabalhou-se em cima disso e foi importante o estágio na Turquia, a partir daí atingiu o nível que me satisfez, começou a jogar muito bem, a sentir-se confiante. Atingiu números respeitáveis e todos sabemos os problemas por que passou. Estou muito feliz por ele”, declarou, não fugindo da relevância emotiva de Ilicic estar neste Europeu. “Significa imenso porque é muito bom que um jogador deste calibre tenha regressado. Quando ele saiu do Maribor em 2010/11, eu era o adjunto, e ele disse que queria voltar um dia e retribuir. Cumpriu essa promessa, mas temos consciência do que influenciou a sua carreira após o Covid-19. Ele venceu os problemas de saúde. E foram muitos! Venceu e venceu, acredito que é esse o resultado. Acho que o conseguimos ajudar, tenho um respeito enorme pelos problemas com que lidou. Via-o sorrir e ficava feliz, dizia-lhe”, escalpelizou Simundza, certo de uma nova imagem que veio para durar.
“Agora vejo-o sorrir o tempo todo, está feliz e super competitivo. Vê-lo de volta à seleção é algo incrível para o Maribor e para o país”, argumentou, procurando definir o caminho traçado pelo atacante, do céu ao inferno, do inferno à realidade. “Ele nunca quis desistir, sempre procurou dar essa guinada. Enfrentou os problemas, tentou resolver sozinho e isso deu-lhe paz. Na questão da forma física juntou a ajuda profissional à dos médicos, beneficiando do bom ambiente do clube. Ficando em forma, tudo foi natural, tivemos a felicidade de o voltar a ver a sorrir, a curtir o jogo e a vida”, destacou.
As palavras de Rice e a prova de que nunca se deve desistir
Ilicic não deverá jogar de início contra Portugal, mas é um trunfo esloveno que merece todo o cuidado, pois as suas chuteiras desenharam muitas proezas. Apesar de veterano, está bem vivo... e refeito de uma brava luta, exemplo paradigmático do grito de ajuda cada vez mais presente quanto à saúde mental no desporto, exigindo sensibilidade apurada. “A minha história é a prova que nunca devemos desistir. Tal como podemos perder tudo, a vida dá-nos tanto! É preciso encontrar uma maneira de aproveitar a vida outra vez, de ser feliz”, afirmou Ilicic, ainda no rescaldo de dois particulares que disputara antes do Europeu. Já no final do jogo contra a Inglaterra, não passou ao lado das palavras que ouviu de Declan Rice. “Disse que respeitava imenso a minha história”.
“Abri a porta, o resto já tinha”
Simundza crê que Ilicic pode ser dos melhores eslovenos e colega admite grupo a torcer por ele no Euro. Soudani, antigo avançado do Vitória, aproveitou o talento de Ilicic na última época ao serviço do Maribor, vendo o esloveno brilhar como jogador livre, mais um 10, decisivo nas bolas paradas.
Soudani, antigo avançado do Vitória, foi parceiro de Ilicic na época do Maribor, que não conseguiu melhor do que o segundo lugar. O argelino beneficiou deste reencontro do esloveno primeiramente com a vida e os seus estímulos mais puros, depois com os seus padrões de foco e brilhantismo.
“Se estás com um jogador desta qualidade, é tudo mais fácil. Ele é de outro nível, jogou no Calcio vários anos. Fizemos uma grande época e já estou desejoso que comece a nova temporada e de o voltar a ter por perto, inclusive nos jogos europeus. Além do jogador, é uma excelente pessoa”, classificou o atacante argelino, que partilha a mesma idade de Ilicic, tendo feito carreira no Dínamo Zagreb, no Olympiacos, antes de chegar ao Maribor. “Chego esta época e já lido com ele recuperado da depressão, só vi uma grande mentalidade. Ouvi muitas coisas, do que engordou, da vontade de deixar de jogar. Não foi fácil mas chegou ao Europeu, foi ao fundo mas renasceu, física e mentalmente”, avaliou, reconhecendo o papel de “ídolo”, que representa na Eslovénia. “Todos têm muito carinho por ele, jogadores e adeptos. É um tipo tranquilo que também gosta de ajudar, faz isso pelo clube e pelos jovens. A qualidade continua com ele, não se perde, pode mudar só um pouco a frescura de quem tem 26 ou 36...”, elogiou, emoldurando os passes açucarados que valeram muitos golos. “Jogou a número 10, de forma livre, descaindo sobre a direita ou esquerda. Fazia golos, muitas assistências, algumas para mim. Qualquer equipa necessita de um jogador destes. Pode definir um jogo nas bolas paradas, num passe ou num remate”, asseverou Soudani, atento ao que possa fazer Ilicic diante de Portugal, onde está o seu ex-companheiro José Sá. “Estamos a torcer por ele, ficamos muito felizes de o ver entrar contra a Inglaterra”, disse Soudani, falando da cumplicidade do grupo, em estágio de pré-temporada, com Ilicic.
Ante Simundza acredita que Jojo ainda pode cintilar a partir. “Toda a gente na Europa conhece Ilicic pelo que fez na Atalanta, todo o mundo celebra este regresso de alguém que já deu muito ao futebol. É importante que esteja na seleção, pode ter um papel fundamental. O selecionador decide quando vai precisar dele, como o gere e utiliza. Sei que pode ajudar muito e ser um dos melhores. Jogue um minuto fará de tudo pela seleção”, enalteceu, afastando qualquer milagre. “Abri-lhe uma porta e ele respondeu fisicamente. O resto é igual ao que existia na Atalanta, a chave reside em ter ordem, trabalho e disciplina. Ele sabe disso, conhece o seu papel, entende o jogo”, valorizou Simundza.