Ex-Vitória sofreu duas paragens cardíacas e deixou o futebol: "Eriksen e Casillas falaram comigo"
Dragisa Gudelj, irmão do ex-Sporting Nemanja Gudelj, que agora joga no Sevilha, sofreu duas paragens cardiorrespiratórias em 2023, quando jogava no Córdoba, e teve de deixar o futebol. Em entrevista ao jornal espanhol AS, o antigo defesa do V. Guimarães (equipa B e sub-23), de 26 anos, recorda essas episódios
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A vida depois de deixar o futebol: "Agora estou a trabalhar para melhorar o aspeto mental, que é onde sofri mais danos. Para um futebolista, deixar o futebol é um golpe muito, muito, muito, muito duro e dói muito. Ainda mais quando se está a meio da carreira e tudo está a correr bem. Eu era o capitão e o líder do Córdoba. Mas bem, a vida é assim mesmo. Agora, cada dia que passa, estou a melhorar. A minha família e os meus amigos estão a apoiar-me e tenho profissionais com quem estou a trabalhar. É preciso pensar positivo. Isto continua. Só temos de olhar para trás para aprender. Por isso, agora, estou a tentar encontrar-me e ver o que quero realmente fazer e como quero recomeçar."
A primeira paragem cardíaca que sofreu, em março de 2023, contra o Racing Ferrol: "Estive em campo durante três minutos e meio praticamente morto, sem pulso. Para mim, foi tudo como um segundo. Quando caí, levantei-me e pensei: 'O que é que me aconteceu? Acho que alguém me bateu'. Depois disseram-me que estive inconsciente durante cerca de sete minutos e em paragem cardiorrespiratória durante três minutos. No vídeo podem ver como, quando me levantei, comecei a fazer força e a dizer às pessoas que não havia nada de errado comigo. Foi um momento muito especial e estranho na minha vida. Senti que me estava a perder e que estava a entrar num túnel cada vez mais pequeno e escuro e a ouvir o que parecia que cada pessoa das quase 25 000 que estavam em El Arcángel estava a dizer. Até ao momento em que me levantei na ambulância e o médico me disse: 'Dragi, tem de se acalmar porque teve uma paragem cardíaca e tem de se acalmar'. Naquele momento, o mundo parou e fiquei com todas as minhas dúvidas. Nunca mais me vou esquecer deste momento na minha vida."
Intervenção dos médicos: "No meu caso, o segredo foi a rapidez e a coordenação. O médico, a ambulância, o desfibrilhador... foi tudo muito rápido. Além disso, tive a sorte de ter um anjo de Deus que fez questão de estar com o seu filho nas bancadas nesse dia: Pepe Segura, o cardiologista do hospital de Córdoba e um dos melhores de Espanha, que é um grande adepto da equipa e eu sou um dos seus jogadores preferidos. É o meu segundo pai e tenho uma relação muito especial com ele. Ele também estava presente quando decidi deixar o futebol, dois ou três dias depois de ter acontecido a segunda vez. Quando me viu cair, percebeu o que estava a acontecer e não hesitou em saltar para o relvado sem pensar e, juntamente com o Dr. Bretones, de Córdoba, lidaram com a situação com muita calma e experiência num estádio cheio. Uma situação destas não é fácil, mesmo para eles. Três minutos e meio de vida não é pouco e eu estava à beira de não voltar ou de voltar de outra forma. Graças a Deus e a eles, que estavam lá a tempo. Devo-lhes a minha vida."
Não quer deixar o mundo do futebol: "Isso é certo. Quero estar sempre neste mundo. Como o meu pai é nosso agente (e também agente do Nemanja), o mundo da representação de jogadores é uma opção que eu também gostaria de seguir. Orientar, aconselhar e desenvolver jogadores, sobretudo jovens. Saber como se sentem, o que precisam... mas tenho uma mente aberta. Treinador, não, não me agrada muito. Mas também gostaria de ser diretor desportivo. Quero muito aprender sobre este mundo e tenho muita ambição. Já a tinha como futebolista e quero transmiti-la agora nesta outra parte do mundo do futebol. A parte positiva disto é que sou muito jovem, tenho 26 anos, e tenho tempo para melhorar em muitos aspetos. Mas para mim, sinceramente, tudo isto não tem sido um problema. O problema foi quando estive no hospital durante o primeiro mês, quando tive o desfibrilhador. Mas depois disso, fisicamente nunca sofri e nunca tive medo. Só tinha alguns sintomas. Mas agora não tenho problemas nenhuns. Fisicamente, estou ótimo. Faço desporto e ginásio, tenho uma vida normal."
Pressão no desporto de alto rendimento: "Treinar para uma competição de alto nível não é o mesmo que jogar em frente a 30 000 pessoas. É nessa altura que se fica stressado. E embora os futebolistas possam parecer calmos em campo, há muita adrenalina e isso foi demasiado para o meu coração. O futebol de alto nível não é uma vida muito saudável. Estamos 90 minutos a correr com uma frequência cardíaca de cerca de 140-200, com muitos estímulos: as bancadas, a pressão para marcar golos... E, mesmo que não saibamos, sentimos muita adrenalina. Como jogador, eu era muito calmo. Nunca estava stressado, queria sempre sair e tinha sempre confiança em mim próprio, mas vivia muito o jogo. Estava muito ansioso por ele. E quando entrava em campo, fazia-o sempre com um sentido de responsabilidade muito grande, vivia muito os jogos... e talvez para mim fosse demasiado. Era o tudo ou nada. Mas é assim que sou na vida. Quando faço alguma coisa, dou 120%."
Voltou a jogar após a primeira paragem cardiorrespiratória: "Depois da primeira vez, o meu irmão não perdeu um segundo para que eu não voltasse a um campo de futebol. Ele foi muito claro e eu compreendo-o perfeitamente. Mas com o tempo, falando com ele em lágrimas, em momentos muito emotivos, com o Christian Eriksen, que também passou por isso.... Com o tempo, pouco a pouco, ele recuperou a confiança. Comecei a treinar, os exames dizem-me que tenho um coração saudável... e começa-se a pensar que talvez aquele episódio seja o primeiro e o último. No segundo dia em que estava no hospital, já dizia ao médico, ao diretor desportivo do Córdoba e ao presidente que ia voltar de certeza, sem qualquer dúvida. Era muito claro para mim, disse-o à minha família e a toda a gente. Por isso, o regresso foi tão fácil. Não tive medo nenhum. Mentalmente, estava tão bem... Queria muito voltar e queria ser um exemplo para muita gente. Comecei a época como capitão, fisicamente sentia-me bem... as pessoas perguntavam-se como era possível estar a atuar e a treinar a este nível depois de um período tão forte. É por isso que não esperava que me pudesse voltar a acontecer. Foi tão inesperado... É por isso que o golpe mental depois da segunda vez foi tão forte que até é difícil de explicar."
A conversa com Eriksen, que sofreu o mesmo em 2021: "Ele ligou-me e eu estive a falar com ele sobre tudo durante quase uma hora após o primeiro episódio. Eu era como uma criança, assustada e com tantas perguntas depois do que me aconteceu e ele estava muito calmo, dando-me muita confiança e explicando-me tudo o que me aconteceu, o que me deu força para continuar. Deu-me muitos conselhos, especialmente a nível mental. Disse-me que era difícil, mas que eu tinha de ser positivo, aceitar a situação, normalizá-la e que podia acontecer a toda a gente. Muitos jogadores também me enviaram mensagens e vídeos, como Iker Casillas. Naquele momento, em que estamos numa situação tão má, uma mensagem simpática ajuda-nos muito. Estou muito grato. Não estava à espera que o meu caso recebesse tanta atenção a nível mundial."
A segunda paragem cardíaca, em dezembro de 2023, contra o Melilla: "Depois da primeira vez, não tive medo nenhum. Queria ir para o campo, treinar... Depois da primeira vez não tive medo nenhum e depois da segunda tive medo até de viver uma vida normal, de ter medo de morrer no dia-a-dia. A mudança foi tão grande... Depois da primeira vez, quando caí e perdi a consciência, não sabia de nada. Estive dois ou três segundos inconsciente, mas depois levantei-me sozinho. Estava a pensar: 'O que é que se passa?' E quando aconteceu a segunda vez, naqueles dez segundos, senti: 'Estou a morrer, vou deixar este mundo'. Naquele momento, não pensei que o desfibrilhador me fosse salvar a vida e estava a morrer. Eu disse: 'É isso'. E em dez segundos toda a minha vida passou-me diante dos olhos."