Mohammed Rashid é histórico na seleção da Palestina. Hoje a jogar na Índia, desabafa sobre os horrores que lhe chegam de Gaza, dos dúbios esforços internacionais, apesar da flotilha em curso e dos posicionamentos que crescem contra Israel.
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Que carga têm as imagens de Gaza, que tipo de pesadelo é este para quem está longe com tamanha ligação à terra?
—O pesadelo não é para mim. Eu vejo tudo, no final de cada dia, mas estou fora da Palestina. Limito-me a jogar, a cumprir a minha profissão. O real terror acontece para quem está em Gaza. São essas pessoas que levo no coração, na minha alma e na minha cabeça. Não há no dicionário uma palavra que possa refletir o que eu sinto. Vemos diariamente o que se passa, vemos que as coisas ficam piores, nada muda para melhor. Seguem as bombas, a devastação, morre tanta gente. E as imagens estão à frente dos nossos olhos. São coisas horríveis de se ver. É um tempo que nos deixa sem palavras, em que estamos a lidar com a máxima desumanidade. Há vários discursos nesse sentido, até de vários líderes internacionais.
Vendo já uma longa cronologia de massacres, de mortes, de destruição e fome, custa ver tudo sem uma resolução?
—Não entendo como as coisas continuam, como a comunidade internacional não tem capacidade para lidar com Israel, fazer parar a guerra, ajudar a fazer entrar comida e medicação. Tantas nações poderosas, um mundo inteiro e não se exige algo diferente. Como não pressionam, não há um país que o faça cabalmente, um primeiro-ministro que se imponha? Como ninguém controla Israel? Queria ver se fosse ao contrário...
Que sentimento levam os jogadores da Palestina para cada confronto internacional?
—De raiva! Nunca joguei por mim. Jogo pelo meu povo e vou ao limite, vamos todos, para que se possa alertar para algo e deixar as pessoas em Gaza mais felizes. Mesmo diante de bombas, fome, falta de água, sabemos que há alguém que faz tudo para ver a Palestina jogar, há famílias que o conseguem fazer. Temos de ir ao limite por eles, morrer em campo! Não se trata de um jogo, é uma batalha. O mínimo é dar-lhe alguma alegria no meio de tanta tragédia.
De que forma os acontecimentos em Gaza penalizaram o foco no clube?
—No início dos ataques, eu estava na Indonésia, no Bali United. Foi muito complicado de gerir, era pesado, todos os dias caíam novas notícias, eram bombas, crianças que morriam. Fui perdendo foco e derrapei nas minhas exibições, porque mal dormia. Agora, já tive de aprender, mentalmente, a lidar com tudo isto. Sei que tenho de enfrentar as coisas como jogador profissional. Quero muito que a guerra acabe, mas também tenho de minimizar os meus prejuízos na minha profissão, porque deves respeitar um contrato com uma equipa e nada te pode afetar. Sinto que recomecei na Índia, passo o dia sem ouvir notícias antes dos jogos. Vejo tudo depois dos jogos e acabo devastado.
Qual a importância do futebol para as crianças?
—As nossas crianças querem jogar futebol, querem ser futebolistas. Quando a seleção jogava, eu costumava ver fotografias e vídeos, reuniam-se para nos verem, coladas a uma pequena TV. Isso mostra como são apaixonadas pela seleção. Querem que o nome da Palestina prospere nos grandes palcos. São jovens com sonhos, iguais a tantas pessoas no mundo. A diferença é que as crianças palestinas têm de trabalhar e lutar 100 vezes mais para realizarem os seus sonhos. Se sobreviverem. É tudo mais difícil, seja viajar, ser reconhecido, ser divulgado. Mas ninguém deixa de tentar e trabalhar, porque nunca desistimos. Não somos desse tipo, sendo perturbador ver tantos sonhos bombardeados. E que se sofre sem acesso a coisas básicas da vida: água, comida e medicamentos. É um mundo que nos desaponta.
Que ligação e imagens de Gaza na meninice ou infância?
— Quando era uma criança, na Cisjordânia, pensava visitar Gaza, tinha imensas coisas na cabeça, ouvia histórias de como era agradável, o peixe que lá se pescava e comia. E o marisco, tão perto da costa. Queria experimentar estas coisas, mas nunca tive oportunidade. Ainda são algumas horas entre Cisjordânia e Gaza. Hoje não sei quantos anos vai demorar para que Gaza volte a ser o que já foi. E a própria Cisjordânia! Temos os bloqueios, os postos de controlo. Antes não era normal, mas era, definitivamente, muito melhor, conseguíamos mexer-nos um pouco. Atualmente são raptos, tiros, rusgas aleatórias. Se quero ir de Ramallah a Jericó demoro imenso. Tudo mudou para pior, na Cisjordânia as pessoas são presas, em Gaza são mortas e massacradas. É um horror”.
Recuperar a normalidade que nunca existiu
Algumas manifestações pró-Palestina são notórias em estádios, mas a cúpula do futebol podia fazer mais?
—Há algo que deve ser feito pela FIFA. Temos de ver como atuaram com a Rússia. Isso poderia pressionar mais Israel a fazer algo para mudar. A FIFA tem uma grande autoridade no mundo político, deviam fazer algo, tomar ações, pressioná-los… Não estamos a falar só do caso de Gaza e Palestina, tem também a ver como atuam com a Síria ou Yemen.
Que futuro um palestino tenta descortinar para a região?
—Não sei o que o futuro nos reserva, mas espero que acabe tudo quanto antes. Vai levar muito tempo a recuperarmos a normalidade, mesmo que ninguém conheça uma vida normal. Estávamos sob uma ocupação, mas algo muito menos penoso do que temos hoje. Não consigo esperar muito de Israel e da comunidade internacional, se algo tivesse de acontecer, já teria acontecido. Nada mudou, ou mudou para muito pior. Não posso confiar em palavras de Israel, é difícil imaginar o que vem.
"Perdi alguns amigos em Gaza"
Como foi enfrentada a morte de Suleiman Al-Obeid, o Pelé da Palestina?
—Foi um dos melhores jogadores na West Band League [Cisjordânia]. Vi vários jogos dele, quando defrontava a equipa da qual a minha mãe era adepta. Era um craque como extremo, muito rápido, um grande avançado. Tinha as suas características e era uma figura humilde e querida. Era afetuoso com todos. É horrível saber que morreu à procura de comida para a família. Não é aceitável ouvir isto na atualidade. O nome de Pelé ficou porque ele era mestre em golos acrobáticos.
Para o Mohammed há perdas muito próximas neste genocídio em Gaza?
—Perdi amigos em Gaza. Um deles, na verdade, era muito próximo. Foi martirizado pouco depois do começo dos bombardeamentos. Fiquei de mau-humor várias semanas, porque falava com ele todos os dias e era quem me ajudava a fazer uns vídeos para promover nas minhas redes sociais. Era muito bom em multimédia e foi uma notícia terrível, senti que tinha perdido um irmão mais novo. Não se espera que algo aconteça assim, e, como ele, são muitos inocentes que morrem de um dia para outro. Gente que procura comida, que não tem armas e acaba por morrer, por conta dos mísseis e bombas. É revoltante, mas temos de saber lidar, são dores e prejuízos que nos tocam, mas temos que nos afastar do que é mais devastador.