
Gary Neville, Phil Neville, Paul Scholes, Ryan Giggs e Nicky Butt compraram o Salford City, o clube do bairro onde treinaram e que nesta altura alberga a maior comunidade judaica de Manchester
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O que fazem Gary Neville e Paul Scholes debruçados sobre o gradeamento de um relvado, num estádio onde todos podem entrar ainda sem pagar bilhete? As duas antigas estrelas do Manchester United são dois dos donos do Salford City FC e não têm um camarote para assistir aos jogos. O Moor Lane, onde o Salford joga, tem condições ao nível de um distrital português. Mas vai deixar de ter. "Para cumprir os critérios para participar na National League, terá de ser melhorado e reconstruído até 31 de julho de 2017. Esperamos ter três novas bancadas, para que a capacidade passe dos 2163 espectadores para cerca de cinco mil", explicou-nos Andrew Giblin, o secretário técnico do clube mais famoso dos arredores de Manchester. O clube terá, portanto, novas instalações, mas desta vez não sai do sítio, como no passado.
O Salford chegou a Moor Lane há poucos anos. E com estranheza. Afinal, o bairro é conhecido não por ter formado grandes jogadores, mas por nele morar a maior comunidade judaica da terceira maior cidade inglesa. "Tivemos alguns judeus no passado e continuamos abertos a receber jogadores e adeptos de qualquer denominação. O clube até jogava noutro sítio e só se mudou para aqui quando precisámos de um recinto decente", confirmou-nos o secretário.
Os Neville são os menos simpáticos de todos", garante-nos o porteiro. "Mas foi com eles que tudo começou. E o Gary já chegou a jogar quando faltaram jogadores
Ao contrário de Neville e Scholes, que até não são propriamente muito abordados pelos adeptos para os autógrafos e fotografias da praxe, Andrew Giblin tem um gabinete. Ou melhor, um Centro de Imprensa. "Andy Press Center", lê-se a letras manuais, pintadas num contentor de zinco. Lá dentro, há duas mesas e quatro cadeiras. Até 2013/14 bastava. Agora começa a ser pouco. O Andy, como toda a gente no estádio lhe chama, também tem um bar e um gabinete. No Salford, ainda faz quase tudo, como já fazia desde 2010, mesmo que quem mande nas grandes decisões sejam agora as grandes estrelas. "As decisões principais, sim, são eles que tomam. Mas o dia a dia do clube continua a ser assegurado pelos voluntários que já faziam o trabalho antes", explica. Não há judeus na equipa. O interesse do bairro é, como dissemos, outro. E o fervilhar dos dois mil adeptos que lotam o recinto nada tem a ver com a pacatez das centenas de judeus que se passeiam nas imediações. Há crianças vestidas de preto e branco da cabeça aos pés. Há jovens com os relógios acorrentados aos bolsos das calças. Há idosos com duas tranças a escapar do chapéu, esse sim, igual em todos os que passam. Há mulheres a passear de vestido, completamente cobertas de rendas brancas, saia e casaco preto. A menos de 50 metros do sítio que cinco diabos vermelhos elegeram para reinar, há um mundo a preto e branco a passar.
Peter Lim acrescentou negócio à paixão.
Gary Neville e Scholes foram quem a reportagem de O JOGO encontrou. Mas Nicky Butt, Ryan Giggs e Phil Neville também aparecem com regularidade, contam-nos. "Para nós, já é normal convivermos com eles durante os jogos. Não são as estrelas do United, mas os donos-adeptos do Salford. E veem os jogos no meio de nós", continuam a explicar-nos.
O processo remonta a março de 2014 e chegou com surpresa. "É uma compra emocionante. Queremos unir a comunidade do futebol, usar a nossa experiência e conhecimento para ajudar os jovens talentos. Poder fazê-lo no Salford torna tudo mais apaixonante", disse na altura Ryan Giggs, então treinador adjunto dos red devils, onde jogou até aos 40 anos. A ideia partiu dos irmãos Neville, que começaram a carreira no clube. Giggs, Butt e Scholes chegaram pela amizade. Mas não só. "Quando eles jogaram no Manchester, o centro de treinos era em Salford. Alguns dos donos [os Neville] eram daqui e os outros estavam cá sempre e até compraram casas. Basicamente, eles quiseram "devolver" e acrescentar algo de novo à comunidade de futebol local e Salford City, a sua zona habitacional, foi a primeira escolha", completa Andy, com o orgulho de quem é reconhecido internamente tanto como os novos donos. Para que o projeto fosse além da paixão, faltava a ambição. Peter Lim juntou-se ao grupo "a posteriori" e ficou com 50% das ações. O negócio está a chegar. "O objetivo dos proprietários do clube é, para já, subir mais uma vez de divisão, para que este chegue às ligas profissionais e por lá se mantenha alguns anos", frisa Andrew.
Gary Neville recusou explicar-nos o que mais pretende. "Agora não posso falar, estou concentrado a ver o jogo", respondeu com desprezo. "No fim? No fim vou para casa", reforçou. Scholes encolheu os ombros, como que a dizer que depois da resposta do amigo não lhe ficaria bem agir de outra forma. Sem problema. "Os Neville são os menos simpáticos de todos", garante-nos o porteiro. "Mas foi com eles que tudo começou. E o Gary já chegou a jogar quando faltaram jogadores. Não temos como não agradecer", desculpou-se.
À Imprensa inglesa, os antigos craques mostraram maior ambição. O Salford City quer chegar ao Championship num prazo máximo de dez anos (faltam três subidas de divisão) e trabalhar com jovens promissores, que muitas vezes se perdem nos campeonatos de reservas. Depois é promover, vender, faturar e repartir. Andy não tem medo do futuro. Mas gostava de continuar a sentir-se em casa. "Muitos dos adeptos são habitantes locais e a maioria deles apoia o clube há muitos anos e ao lado das mesmas pessoas. De momento temos uma atmosfera muito familiar e isso é algo que queremos manter", faz questão de sublinhar. "Além disso, quando os proprietários do clube estão aqui, são mais uns de nós. Gritam, apoiam e protestam como nós", conclui o porteiro.
