Ao comando de combinados nacionais, contam-se agora nove técnicos lusos, o que confere a Portugal o segundo lugar num pódio de competências
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A oportunidade surgiu de repente e ainda por cima em plena contagem decrescente para a final da Taça de Portugal, entre o Benfica e o Sporting, na época de 1995/96. Adjunto de Mário Wilson, o professor Neca era chamado para uma reunião com responsáveis do Benfica e, sem grandes rodeios, deram-lhe a escolher um de dois projetos: assumir o comando do Alverca (na altura, já com fortes ligações aos encarnados) para atacar a subida ao principal escalão do futebol português ou aceitar o cargo de selecionador de Angola, no âmbito de um protocolo de cooperação com o clube da Luz.
O que outrora parecia ser um cargo praticamente inatingível tornou-se, em duas décadas, numa oportunidade relativamente comum.
A resposta teria de ser dada em poucos dias e o treinador achou por bem pedir um parecer a Mário Wilson. "Disse-me isto: "Neca, eu vou morrer sem nunca ter sido selecionador de um país estrangeiro. Esse convite é uma grande honra e tu estás talhado para ser selecionador de um país estrangeiro. Vai lá conhecer aquilo durante uns dias, mas quero-te aqui na final da Taça"", recordou Neca, que, no regresso a Portugal, acabaria por festejar o triunfo do Benfica sobre o rival de Lisboa, por 3-1, no Jamor.
Atualmente com 68 anos e já com a experiência de ter sido também selecionador das Maldivas, o treinador tem a clara noção de que usufruiu de uma rara oportunidade num tempo em que "o futebol português não tinha, nem de perto, nem de longe, o prestígio de agora". "Seríamos, no máximo, três treinadores a trabalhar no estrangeiro", estimou.
Vinte e quatro anos depois, o contexto é totalmente diferente. Em qualquer canto do Mundo, há um treinador português a trabalhar, sendo Portugal a segunda nação com mais selecionadores principais (nove), depois da França (com 14). São eles Fernando Santos (Portugal), Carlos Queiroz (Colômbia), Toni Conceição (Camarões), Hélio Sousa (Barém), Paulo Bento (Coreia do Sul), Pedro Gonçalves (Angola), Luís Gonçalves (Moçambique), Fabiano Flora (Timor-Leste) e José Peseiro (Venezuela).
Os convites para comandar seleções deixaram de ser exclusivos de Carlos Queiroz, Fernando Santos e de uma legião de franceses
Antes de José Peseiro se ter comprometido, muito recentemente, com a Federação da Venezuela, já haviam ficado para trás os contingentes de selecionadores (sete) de Inglaterra, Holanda e Argentina, confluindo como principais motivos para esta significativa representação lusitana "as várias conquistas de Manuel José na Ásia e de José Mourinho na Europa e os títulos conseguidos por Portugal no último Europeu e na Liga das Nações".
Essa é a perspetiva do novo selecionador da Venezuela, que também não esquece o prestígio que Portugal granjeou com os dois Mundiais de Juniores ganhos sob o comando de Carlos Queiroz. "Sempre tivemos grandes jogadores e a nossa escola de treinadores é elogiada em todo o mundo. O presidente da Federação da Venezuela deu conta disso na minha apresentação", testemunhou Peseiro, ressalvando que qualquer treinador português tem a capacidade de "entender facilmente a história e os costumes de cada povo". "Temos essa matriz genética. Somos um povo de emigrantes e isso já vem desde o tempo dos Descobrimentos", juntou.
Desconhecido depois de Seedorf
A marca portuguesa tornou-se num cartão de visita tão determinante que a Federação dos Camarões até prescindiu de contratar um treinador sonante quando teve de arranjar um substituto para o holandês Clarence Seedorf.
"Cheguei, de facto, como um desconhecido. Não encaixava no perfil de selecionador com nome, como são a maioria dos treinadores que trabalham com seleções africanas. Levaram em conta o facto de eu ser português, com experiência a trabalhar no estrangeiro. O treinador português tem muita procura, pelas qualificações e pelos bons resultados. O treinador português tem uma imagem de competência", assinala Toni Conceição, que tudo tem feito para reorganizar o departamento de observação.
"São vários os jogadores com 18 ou 20 anos que já estão ligados a clubes europeus de bom nível, mas não estavam a ser seguidos pelos responsáveis da seleção Sub-21. Por outro lado, no último Mundial de Sub-17, disputado no Brasil, só foram chamados jogadores que atuam nos Camarões, por imposição da lei. Julgo que agora vão tentar mudar isso", referiu.
Só no continente africano estão Toni Conceição, Pedro Gonçalves e Luís Gonçalves
Cones e coletes para as Maldivas
Com obra feita na condução do Burquina Faso (levou esta seleção à CAN com três vitórias inéditas fora de casa, frente à Tunísia, Seicheles e Burundi) e do Gabão, Paulo Duarte também se espanta com a existência de tantos selecionadores portugueses, referindo-se a uma década dourada.
"Nos últimos 10 anos, os treinadores portugueses ganharam muitos títulos, como se verificou com o José Mourinho, o Leonardo Jardim, o Manuel José, o Jesualdo Ferreira, o Rui Vitória, entre outros. Há 20 anos, o cenário não era esse", argumentou, embora ressalvando de que a sua mudança para o Burquina Faso se ficou a dever ao facto de ter causado boa impressão aos responsáveis da federação desse país durante "um estágio do Leiria" que se deslocaram a Portugal para conversarem com o internacional burquinês Zongo.
Se os relvados "em mau estado" são comuns em qualquer seleção africana, como confirmaram Toni e Paulo Duarte, nem tudo é como parece quando se parte para um país pouco badalado no futebol. "Quando fui para as Maldivas, levei dezenas de cones e coletes para os treinos e eles tinham lá tudo. Foi fantástico", contou o professor Neca.
Queiroz é o treinador português com mais experiência em seleções. Já serviu Portugal, Emirados Árabes Unidos, África do Sul, Irão e Colômbia
Queiroz já leva quatro apuramentos
Rosto principal dos dois títulos mundiais de Sub-20 conquistados por Portugal (Riade, em 1989, e Lisboa, em 1991), Carlos Queiroz é um "campeão" em apuramentos para Mundiais, sendo o único treinador português que conseguiu quatro qualificações por seleções diferentes - foi em 2017 que igualou a marca de Carlos Alberto Parreira (Kuwait, em 1982, Brasil, em 1994 e 2006, e Arábia Saudita, em 1998).
O atual selecionador da Colômbia apurou a África do Sul para o Mundial da Coreia do Sul/Japão, em 2002, Portugal para o Mundial da África do Sul, em 2010, o Irão para o Mundial do Brasil, em 2014, e outra vez o Irão para o Mundial da Rússia, em 2018. Apresentado em fevereiro de 2019 como novo comandante da Seleção "Cafetera", Queiroz aponta a mais um apuramento para o Mundial, estando na forja um novo recorde.
A MINHA VIDA DAVA UM FILME
Toni Conceição, selecionador dos Camarões
Apelar à pátria e assistir a dez jogos por semana
Mal assumiu o comando dos Camarões, Toni teve como prioridade reconciliar os jogadores com a Federação. É que foi por um triz que o país não se fez representar na última edição da CAN devido a um atraso no pagamento dos bónus de participação. "Tenho apelado à honra de representarem a seleção", contou, empenhado, por outro lado, em convencer a Federação a tentar adiar alguns jogos porque são vários os casos de atletas que atuam na Europa que chegam "de véspera". Por semana, visiona uma "média de dez jogos", incluindo vários da seleção camaronesa "de há cinco anos" na perspetiva de "repescar" alguém esquecido.
O selecionador português mais jovem em atividade chama-se Fabiano Flora, tem 34 anos e está ao serviço da seleção de Timor-Leste
Professor Neca, ex-selecionador de Angola e Maldivas
Sobrevoar a guerra em avião de carga com whisky
Na primeira deslocação que fez pela seleção de Angola (ao Uganda), o professor Neca deparou-se com algo inopinado: a comitiva teve de viajar num avião de carga russo, normalmente destinado a transportar "material de guerra para zonas de combate". "Figuei fulo. Íamos todos sentados no chão, ao lado de grades de cerveja e whisky . Essas bebidas eram para os deputados e adeptos que nos acompanhavam", explicou, acrescentando que a viagem durou mais duas horas do que era suposto porque o avião atravessou o Zaire em guerra e a companhia não havia pedido "autorização" para utilizar aquele espaço aéreo. "Podíamos ter levado um balázio".
Paulo Duarte, ex-selecionador do Burquina Faso e Gabão
Apontavam-lhe como defeito a juventude e riam-se dele
Quando foi apresentado como selecionador do Burquina Faso, Paulo Duarte tinha 38 anos e, provavelmente, nenhum cabelo branco. Por aí, não haveria problema numa data de países, mas ali não foi bem assim. "Os jornalistas começaram logo a questionar a minha juventude", recordou. Mesmo surpreendido com semelhante polémica, o treinador não se encolheu e partiu para o ataque: "Disse-lhes isto: "não confundam experiência com competência. Há pessoas que não evoluem nada em 20 anos, mas dentro de dez anos vocês ainda vão falar muito de mim". Riram-se de mim, mas não me enganei: há dois anos era um herói".
Fernando Santos é o selecionador português mais titulado: ganhou um Europeu (2016) e a Liga das Nações (2018)
José Peseiro, selecionador da Venezuela e ex-selecionador da Arábia Saudita
Qualidade rara numa liga profissional com cinco anos
Identificar um jogador selecionável na liga da Venezuela será quase tão difícil como descobrir uma agulha num palheiro. José Peseiro foi alertado para essa dificuldade e já teve a oportunidade de confirmar, ao vivo, que não se trata de um campeonato muito rico em qualidade. "É uma liga profissional que só existe há cinco anos. Talvez dentro de dois anos as coisas sejam diferentes", estimou, assumindo que acompanhará, preferencialmente, as ligas de Espanha, Portugal, Rússia e Itália: "É nesses países que temos mais jogadores venezuelanos convocáveis". A missão do ex-treinador do Sporting é "muito difícil": apurar a Venezuela para o Mundial 2022, no Catar.