"Competições europeias todo o ano ao fim de semana prejudicarão, ou destruirão mesmo, as provas nacionais"
ENTREVISTA (parte 3) - Aleksander Ceferin, presidente da UEFA, revela-se, afinal, contrário à entrega dos fins de semana às provas internacionais. Pelo menos, todo o ano.
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Onde estará o futebol dentro de dez anos?
- É difícil responder numa frase. O futebol é, talvez, a maior indústria do mundo. Com toda a certeza, é o melhor produto da Europa. Temos de o modernizar, de digitalizar mais, de o adaptar aos tempos modernos, precisamos de jovens dos dez aos vinte anos. As minhas filhas já não veem televisão; só telemóveis e tablets. O futebol continuará a ser o futebol e, apesar de termos de modernizar, eu ainda gosto dele um pouco mais conservador. Vi, quando cheguei, como esta é uma boa indústria, com algumas pessoas que não têm um grande desejo de melhorar, de desenvolver, porque os salários estão em dia, há dinheiro suficiente e tudo parece bem. Mas não podemos pensar assim. Temos de modernizar. Falei com os comissários da NBA e da MLS; podemos aprender com eles, tal como eles podem aprender connosco. Afinal, somos maiores do que eles todos. A UEFA é, de longe, a maior organização desportiva do mundo. Somos três ou quatro vezes maiores do que a FIFA. Fizemos agora parcerias com a Alibaba, para a digitalização. Há um mercado de 1,4 mil milhões de pessoas à espera na China; há um gigante adormecido chamado Índia, com mil milhões de pessoas; há um mercado fantástico na Indonésia, com 250 ou 300 mil pessoas. Temos de modernizar porque o nosso produto é global seja como for. Não é só europeu. Vemos os jogadores que atuam nas ligas europeias: são de todo o mundo e todo o mundo está a vê-los.
"Somos os únicos a distribuir 85% das receitas. Talvez 45 federações não sobreviveriam sem a UEFA."
Onde estarão as ligas médias, como a portuguesa, dentro de dez anos?
- Essa preocupação é das ligas médias, mas também das pequenas ligas, como a eslovena. Temos de cuidar do futebol em todos os países. Percebo as preocupações de um ponto de vista e do outro. Não há outra indústria no mundo com setecentos competidores pelo mesmo produto. Haverá sempre discordâncias; existem em todas as indústrias. Mas se jogarmos competições europeias, todo o ano, ao fim de semana, isso prejudicará, ou destruirá mesmo, as competições nacionais, em especial nos países mais pequenos. Ainda pensamos que tem de haver ligas nacionais e preocupamo-nos com elas também. Mas é claro que quando se fala de equilíbrio competitivo e do facto de um apuramento para a Liga dos Campeões gerar tanto dinheiro que, só por si, arruína esse equilíbrio, também se deve falar do relacionamento entre as ligas. A Premier League dá algum dinheiro aos outros países que ajudam valorizá-la? Não dá. Portanto, se a solidariedade parte da UEFA, também tem de partir de todas as outras grandes ligas. Temos de pôr tudo na mesa: os clubes, as ligas e a UEFA, porque toda a gente aponta o dedo à UEFA. UEFA, UEFA, UEFA. Somos os únicos a distribuir 85% das receitas. Talvez 45 federações não sobreviveriam sem a UEFA. Não somos um banco para gerar dinheiro. É fácil dizer que a UEFA tem de garantir o equilíbrio competitivo, mas o que podemos fazer na Liga portuguesa? Nada. Somos responsáveis pelas competições europeias, apenas. Temos de nos sentar e as grandes ligas devem mostrar solidariedade com as ligas médias e pequenas. E a UEFA, naturalmente, fará o mesmo.
"Em termos de dinheiro, depois da mudança, a solidariedade aumentou."
Quando a UEFA pediu à União Europeia para negociar de forma centralizada os direitos TV da Liga dos Campeões, invocou que isso permitiria distribuir mais dinheiro aos clubes menos ricos. Mas está a acontecer o contrário: a nova fórmula dá ainda mais dinheiro aos clubes ricos, criando ainda mais desigualdade. Como se explica isto?
- Não diria isso. Em termos de dinheiro, depois da mudança, a solidariedade aumentou. O problema é que se tornou mais difícil a qualificação para as provas. Nisso estamos de acordo. É o que incomoda as ligas médias. As pequenas já não se qualificavam de qualquer maneira. Ficam felizes com o que receberem.
O FC Porto vai receber, pelo menos, 70 milhões de euros da Liga dos Campeões esta época. A diferença para o Sporting, terceiro classificado e agora sem lugar na Champions, é gigantesca e ameaça o equilíbrio competitivo.
- A diferença está cada vez maior. É um dos problemas, concordo. Mas isto não é só sobre a Liga dos Campeões; é sobre tudo.
O fair play financeiro está a ser contestado em tribunal pelo Milan e pelo PSG, e o mesmo pode suceder com outras regras importantes. É possível controlar os gastos e a inflação sem convencer a União Europeia de que a indústria do futebol e a dos sapatos são coisas diferentes?
- Demasiadas vezes misturamos o fair play financeiro com o equilíbrio competitivo. O fair play financeiro foi um sucesso; basta ver como estavam as finanças dos clubes antes e como estão agora. O que resulta dele agora é o equilíbrio competitivo. Aí estamos a lutar. O sistema não está suficientemente modernizado. De um lado temos equipas com recursos ilimitados, que contratam especialistas de todo o lado. O nosso sistema é conservador. Nos dois casos de que falou, temos um acordo com a Câmara de Investigação [parte do corpo de controlo financeiro da UEFA] em que o clube aceita seguir determinados procedimentos e depois temos a Câmara Adjudicatória [idem] que muda completamente a decisão da mesma instituição. A seguir vamos para o TAS e cai tudo. Temos de perceber como proceder de forma que estes processos sejam mais sólidos.
"Os cidadãos europeus podem trabalhar livremente em qualquer país da EU, por causa da concorrência, por causa do mercado livre, mas o futebol é diferente. Toda a gente joga no estrangeiro."
Há o perigo sério de várias outras regras da UEFA e da FIFA serem revogadas em tribunal, com consequências trágicas. A FIFPro chegou a falar em banir as janelas de transferências para permitir as saídas e entradas de jogadores a qualquer momento.
- Duvido que possa acontecer. Como você disse antes, a indústria dos sapatos é diferente da indústria do futebol. Na Eslovénia, depois de dois contratos a termo estamos contratados pela empresa em definitivo, mas isso não é possível para os futebolistas. Assino dois contratos de um ano e depois sou empregado do clube para a vida inteira? Os cidadãos europeus podem trabalhar livremente em qualquer país da EU, por causa da concorrência, por causa do mercado livre, mas o futebol é diferente. Toda a gente joga no estrangeiro. Qual é o verdadeiro perigo para o mercado livre? O facto de toda a gente ir para Itália, Espanha ou Alemanha ou o facto de se poder ir para qualquer lado?
Não tem receio de um novo acórdão Bosman?
- Não, não. A FIFPro é contra quaisquer mudanças. É verdade aquilo que disse: o futebol é diferente. Estamos sempre a tentar conversar sobre isso com a União Europeia.