ZOOM - Casos de racismo no futebol sucedem-se apesar do combate das instituições
Há racismo no futebol. Os casos sucedem-se e os adeptos são os principais culpados. Recorde os principais casos no Mundo e os 10 processos em Portugal
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Não há números exatos, mas a perceção, neste caso, não engana. São milhares de notícias para outros tantos casos, numa simples busca na internet. O assunto entrou na agenda mediática e houve incidentes vergonhosos que mexeram com leis, regras e regulamentos à escala mundial. A FIFA e a UEFA, há muito, têm em curso campanhas contra a discriminação racial, religiosa, de género e orientação sexual. Por cá, Federação e Liga mostram severidade nos regulamentos. Mas isso chega?
Richard Masters, diretor executivo da Premier League: "Já chega, são casos a mais de racismo. Estamos determinados a acabar com a discriminação"
As federações nacionais e os clubes, entre a convicção e o marketing, lá vão fazendo o seu caminho no que diz respeito ao combate a intolerâncias como o racismo. As leis, os regulamentos e as regras no futebol preveem sanções, umas mais, outras menos castigadoras. Mas há sempre um "mas" e a sensação de impunidade, sobretudo nas bancadas, é visível face ao avolumar de casos.
No início da semana, a imprensa inglesa reportou mais quatro casos de racismo, todos na primeira jornada do Championship (a segunda divisão da Inglaterra). Foram alvos, por causa da cor da pele ou da nacionalidade, os jogadores Theo Robinson (Southend), James McLean (Stoke City), Bambo Diaby (Barnsley) e a irmã de Cyrus Christie (Fulham), que estava simplesmente sentada numa bancada a apoiar o familiar.
São incidentes que vão ao encontro dos números da organização "Kick It Out", que há 25 anos combate pelas igualdades no futebol inglês, e cujo relatório anual, de finais de julho e reportando à época passada, revela um crescimento de 32 por cento (praticamente um terço) de casos relacionados com discriminações, sobretudo racismo.
Para sermos mais exatos, o documento, não contestado pelas autoridades desportivas inglesas, reporta 422 incidentes nas competições inglesas: Premier League, Championship, liga feminina, campeonatos amadores e de formação. No ano anterior haviam sido reportados 319.
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Desse total, o capítulo do racismo equivale a bem mais de metade (63%), ou seja, o que equivale a um aumento de 43 por cento em relação ao número de incidentes da época anterior. Algo que a BBC, por exemplo, considera um facto relacionado com o Brexit. Aliás, o exponenciar dos atos de racismo - e de outras intolerâncias - é muitas vezes associado à atividade pública e política à escala global, sobretudo perante incidentes sobre os quais os líderes políticos se demitem, no mínimo, de os condenar.
Houve, na época passada, episódios com jogadores de primeira linha, sobretudo na Premier League: Sterling (Manchester City) foi insultado por adeptos do Chelsea e houve bananas arremessadas a Pierre-Emerick Aubameyang (Arsenal) por adeptos do Tottenham (ambos em dezembro passado). A isto se juntam os insultos islamofóbicos dirigidos ao egípcio Mohamed Salah (Liverpool), durante cânticos de adeptos do West Ham.
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A pressão - entre o que se sabe e o que não se lê, não se vê ou nem se ouve nos Media - sobre os jogadores está a obrigar a uma importante ponderação pelos dirigentes e responsáveis ingleses. Basta atentar ao que desabafou Danny Rose, defesa do Tottenham e da seleção inglesa: "Só quero sair daqui. Já desespero" [pelo fim da carreira], confessou, em abril passado.
O jogador, após uma vitória clara da Inglaterra na visita ao Montenegro (5-1), a contar para qualificação do Euro2020, acabou admoestado disciplinarmente por ter respondido aos adeptos montenegrinos, que em vários momentos do jogo o provocaram com cânticos e imitações de ruídos de macaco, sempre que tocava na bola. Ele bem foi avisando o árbitro, mas... nada.
Em abril, Raheem Sterling, estrela do Manchester City e vítima de vários episódios racistas com origem nas bancadas, escreveu um editorial no prestigiado "The Times". Segundo ele, o problema "está longe de ser solucionado. O manifesto seguiu assinado porvárias figuras do futebol e teve o apoio inequívoco da federação inglesa. Todos estes exemplos levaram Richard Masters, diretor executivo da Premier League, a afirmar: " Já chega, são casos a mais de racismo. Estamos determinados a acabar com a discriminação".
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As provocações e insultos racistas no futebol acontecem em todas as "esquinas" do globo, como acontecem em todas as modalidades. mas o futebol tem a força mediática que se conhece. Dos Estados Unidos à Rússia, passando por Portugal, Brasil, Itália, Espanha, Hungria... Aliás, muito recentemente, O JOGO revelou a denúncia de um manifesto de uma claque do Zenit (Rússia) com um capítulo muito próprio: "O Zenit e os jogadores negros". No texto, os adeptos revelam alguma incongruência: "Não somos racistas e, para nós, a ausência de jogadores negros é uma tradição importante, que enfatiza a identidade do clube e nada mais".
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Mas há mais uma pérola discriminatória no texto: "Não temos nada contra os habitantes desses países e de outros continentes, mas, ao mesmo tempo, queremos jogadores que seja espiritualmente próximos ao Zenit"... Não foi, portanto, à toa que o Zenit, em junho de 2018, foi multado pela UEFA em 46,5 mil euros devido a comportamentos racistas dos seus adeptos, durante a partida dos oitavos de final da Liga Europa, frente ao RB Leipzig.
O Leste europeu tem sido pródigo em casos de racismo, graças à deriva político-nacionalista naquelas geografias nos últimos 10 anos. Mas o problema e a conexão entre a política e o desporto não é exclusiva daquelas paragens, pois basta que haja nacionalismos exacerbados e outras ideologias mais ou menos intolerantes para que o palco desportivo tenha plateias com muito género de fobias. Aliás, numa rápida abordagem ao planeta via internet, descobre-se que, só este ano, já houve 14 denúncias de racismo registadas pelo Observatório da Discriminação Racial do Brasil.
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Houve casos paradigmáticos nos últimos anos. Marcaram a História, pelo impacto mediático desses incidentes, os cânticos a imitar macacos para Samuel Eto'o (Barcelona) Hulk, (no FC Porto e Zenit), Yaya Touré (Manchester City) e Kevin Prince-Boateng (Milan). Ou as bananas atiradas a Dani Alves (Barcelona), Roberto Carlos (Anzhi) e Balotelli (ao serviço da seleção da Itália).
Muitos aguentam o insulto, mas poucos o engolem, à exceção de Dani Alves, que pegou na banana e, com um gesto digno de uma medalha olímpica, comeu-a. Alguns abandonam o campo. O primeiro a fazê-lo com grande impacto foi Kevin Prince-Boateng, alemão naturalizado ganês, num particular entre a sua equipa e ProPatria, em 2013.
Farto de ouvir a imitação de símios desde as bancadas, parou uma jogada e saiu. Atrás dele, saiu toda a equipa (vídeo abaixo). O debate ganhou escala e os colegas de profissão, como Michael Owen ou Rio Ferdinand, não se calaram: pediram proatividade e medidas mais eficazes da parte das autoridades futebolísticas, de modo a sancionar e condenar o racismo.
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Em 2017, o ganês Sulley Muntari, ao serviço do Pescara, foi continuadamente insultado, de forma racista, pelos adeptos do Cagliari, em jogo da liga italiana. Apesar dos cânticos audíveis e dos pedidos de Muntari ao árbitro para interromper a partida, este não protagonizou um único gesto nesse sentido, exceto o de admoestar o próprio jogador com um cartão amarelo.
Muntari saiu do terreno, mas entrou na História como mais uma das grandes vítimas do racismo e da inoperância dos agentes e instituições do futebol (vídeo do incidente abaixo).
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FIFA reforça combate
A indignação de Boateng, de Muntari e de tantos outros fez mexer quem manda no futebol. Hoje há mais ferramentas, nomeadamente ao dispor dos árbitros. E não apenas contra comportamentos racistas. Organizações como a FIFA e a UEFA, tutelas do futebol que estão na vanguarda do combate às discriminações, têm em conta outros fenómenos atuais, como a islamofobia, a xenofobia e a homofobia, tudo sob o radar das associações e de federações nacionais, assim como das ligas profissionais de todos os países.
Por isso, não há muito - em meados de julho - a FIFA anunciou um reforço de medidas contra o racismo e a discriminação, enquadrado no facto de se mostrar atenta aos "terríveis ataques aos fundamentais direitos humanos" dos nossos tempos, conforme nota oficial. E as medidas disciplinares previstas no novo código disciplinar da tutela mundial do futebol são severas, embora dependam da coragem dos intérpretes em campo.
Assim, o Comité Disciplinar do organismo entende, como regra geral, que um jogo pode ser interrompido pelo árbitro devido a incidentes relacionados com as discriminações referidas, podendo mesmo dá-lo como terminado e atribuir a derrota à equipa infratora, seja por conduta dos seus intervenientes, seja pela dos seus adeptos.
Este dobrar das sanções da FIFA (por exemplo, os jogadores e treinadores veem o castigo subir para entre cinco a 10 jogos de suspensão) tem efeitos já na presente temporada. Sobretudo nas competições que organiza diretamente. As multas também estão mais pesadas. Mas será do ajuizar da equipa de arbitragem aquela que é a (acima referida) medida mais revolucionária. Não tendo o estatuto de mandatório junto das ligas profissionais, este código abre portas às federações e às tutelas de arbitragem para agirem em conformidade.
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Sanções pesadas previstas nos regulamentos portugueses
Em Portugal, nas competições profissionais, os casos de racismo estão sob o radar do artigo 113 do Regulamento Disciplinar da Liga, que prevê "comportamentos discriminatórios em função da raça, religião ou ideologia".
"Os clubes que promovam, consintam ou tolerem a exibição de faixas, o cântico de slogans racistas ou, em geral, com quaisquer comportamentos que atentem contra a dignidade humana em função da raça, língua, religião ou origem étnica serão punidos com a sanção de realização de jogos à porta fechada a fixar entre o mínimo de um e o máximo de três jogos", refere o artigo, que admite ainda pesadas multas, com um mínimo superior a dois euros.
Já o Regulamento Disciplinar da Federação Portuguesa de Futebol, com os mesmos fundamentos, prevê sanções mais pesadas no que diz respeito ao comportamentos, nomeadamente a suspensão da atividade desportiva: dois meses a dois anos a jogadores e três meses a três anos a dirigentes. E, em ambos os casos, para a sanção dobra em caso de "especial censurabilidade", critério que pode aumentar também para o dobro a sanção à porta fechada para os clubes, ou seja, de quatro a 10 jogos de interdição.
Tudo isso em articulação com a Lei de Combate à Violência, ao Racismo, à Xenofobia e à Intolerância nos Espetáculos Desportivos, de 2009 e recentemente alterada.
Pelo novo Código Disciplinar da FIFA, um jogo pode ser interrompido pelo árbitro devido a incidentes racistas, podendo mesmo dá-lo como terminado e atribuir a derrota à equipa infratora
10 CASOS NO FUTEBOL PORTUGUÊS
Há a assinalar, nas últimas seis épocas, uma dezena de casos no futebol profissional português, tendo por critério a execução de inquéritos ou processos disciplinares. De todos, apenas o Leixões teve de cumprir três jogos (por dois incidentes espaçados no tempo) à porta fechada. O Braga chegou a ter o seu estádio interditado, mas um recurso para o Conselho de Justiça acabou por absolver o clube pelo comportamento de alguns dos seus adeptos.
2017/18 - Jogo Aves-Braga (I Liga): Comissão de Instrutores (CI) da Liga e Conselho de Disciplina (CD) acusam e decidem: adeptos do braga proferiram insultos racistas. Após recurso bracarense, o CD entendeu ilibar o emblema e anulou sentença de jogo à porta fechada, argumentando pela "inexistência de qualquer facto que permita afirmar que o clube promoveu, consentiu ou tolerou qualquer ato de cariz racista ou xenófobo por parte dos seus adeptos".
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2017/18 - Jogo Paços de Ferreira-Estoril (I Liga): processo disciplinar à equipa da casa, por alegados comportamentos discriminatórios dos seus adeptos para com jogadores do Estoril. Com base no relatório do árbitro Nuno Almeida e após procedimento disciplinar, CI acusou, mas CD absolveu, por não se provar que o clube apoiava ou incentivava, de algum modo, aqueles comportamentos. O Paços de Ferreira, ao anunciar a absolvição, sublinhou ser um clube antirracista.
2016/17 - Jogo Marítimo-Rio Ave (I Liga): CD arquiva processo de inquérito aberto ao Marítimo por alegado comportamento racista dos seus adeptos. Relatório do delegado da Liga sustentava que Heldon (Rio Ave) foi brindado com vários insultos, nomeadamente "preto do caralho". Do staff do Marítimo ao diretor desportivo do Rio Ave, todos negaram ter ouvido tal expressão. Sem testemunhas face à denúncia do delegado, o processo foi arquivado.
2015/16 - Jogo Rio Ave-Benfica (I Liga): CD pune Rio Ave com multa de 536 euros por insultos dirigidos ao então benfiquista Renato Sanches. A imitação, desde as bancadas, do som símio "uh uh uh" foi confirmado pelos dirigentes vila-condenses, confissão que permitiu a instauração da sanção mínima.
2015/16 - Jogos Aves-Leixões/Leixões-Farense/Leixões-Oriental (II Liga): Multa de 16.421 euros e dois jogos à porta fechada (a segunda vez em três épocas). Entre os momentos de comportamento racista de alguns adeptos nessas três partidas, nota para uma banana atirada para o relvado. Diogo Tavares, defesa do Oriental, fez o mesmo que o brasileiro Dani Alves: pegou nela e comeu-a, de forma descontraída. A equipa de Matosinhos cumpriu o castigo.
2015/16 - Jogo Boavista-Benfica (I Liga): CD abre inquérito para avaliar comportamento da claque boavisteira. Processo acabou arquivado.
2014/15 - Chaves-Freamunde (II Liga): CD castiga flavienses com um jogo à porta fechada, por insultos racistas ao costa-marfinense Dally. Jogo cumprido na Taça da Liga porque o Chaves não recorreu. Presidente da equipa transmontana pediu desculpas públicas ao jogador, afirmando que o clube não é racista.
2012/13 - Jogo V. Guimarães-Braga B (II Liga): Distúrbios entre adeptos levam à interrupção do jogo. Há acusações de racismo endereçadas às duas claques. CD sanciona vimaranenses com dois jogos à porta fechada, em função de uma série de irregularidades e comportamento violento (pouco discriminado, à data). Recursos e manhas regulamentares levados à exaustão culminam no arquivamento da sanção.
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2012/13 - Leixões-Belenenses (II Liga): O comportamento nas bancadas é, de forma inédita, punido de forma severa. Foi a primeira vez que se fez valer o castigo de jogo à porta fechada. A então Comissão de Inquéritos e Instrução (hoje Comissão de Instrutores) acusou os matosinhenses, mas o CD da FPF entendeu que o castigo se devia fazer com base noutra norma regulamentar, que não a que punia discriminações racistas. A comissão da Liga recorreu para o Conselho de Justiça da Federação, que colheu os seu argumentos e fechou o estádio para a receção ao Desportivo das Aves.
2012/13 - Nacional-Olhanense (II Liga): O Conselho de Disciplina pune os madeirenses, por cânticos racistas, com um jogo à porta fechada, mas o recurso para o Conselho de Justiça acaba por absolver o clube dos comportamentos registados pelo delegado da Liga no relatório de jogo.