Dirigentes e treinadores denunciam que incidentes de violência promovidos pelos pais acontecem todos os fins de semana nos jogos das camadas jovens. Entre os efeitos, fala-se no abandono do futebol e até no perigo de sobrevivência do futebol de formação. Há uma iniciativa pioneira quase a arrancar: uma escola para educar pais e chamá-los à razão.
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A escola de pais do Torreense é uma nova abordagem ao fenómeno da violência praticada pelos progenitores dos jovens jogadores, para acabar com comportamentos agressivos, manipulativos e violentos. A primeira escola de pais, para travar a falta de cultura ética e desportiva manifestada todos os fins de semana em jogos dos sub-7 aos sub-19 (escalões de formação), num universo de cerca de 150 mil atletas em Portugal, arrancará até final do mês no clube de Torres Vedras. Sinal dos tempos em que os progenitores são o principal fator da violência no futebol jovem em Portugal. Só no fim de semana passado foram revelados três casos de violência envolvendo pais (ver casos).
"Os pais são agressivos, manipuladores e violentos. Tratam mal os colegas dos filhos, os adversários e os árbitros. Fazem com que os miúdos desistam do desporto", afirma Vítor Santos, embaixador do Plano Nacional de Ética no Desporto.
"Essas situações são só as que vêm a público. Os clubes tentam abafar porque a formação é um negócio. São pessoas com estatuto e depois, nas bancadas, fazem essas figuras. São pessoas conhecidas. Tenta-se proteger e fazer com que as pessoas não sejam identificadas." A afirmação é de Vítor Santos, durante 15 anos (até 2016) treinador de miúdos entre os cinco e os 18 anos e atual embaixador do PNED - Plano Nacional de Ética no Desporto, que, sob a tutela do Instituto Português do Desporto e Juventude (IPDJ), organiza e realiza campanhas, concursos, publicações e ações de formação junto de escolas e clubes sob o mote "Move-te por valores". São cerca de 150 ações por ano que envolvem sete a oito mil jovens, pais e agentes desportivos.
Depois há um plano integrado da Federação Portuguesa de Futebol, através do Grupo de Trabalho da Certificação, para valorizar os comportamentos positivos e banir os negativos, de que falaremos mais adiante.
OPERAÇÃO EDUCAR - ESCOLA DE PAIS TORREENSE
340 atletas
700 pais
4 pilares (Psicologia, Ética, Nutrição e Educação)
Mas a realidade pública é um icebergue: os incidentes públicos são apenas a ponta de uma grande massa de comportamentos antidesportivos e violentos. "Os pais são agressivos, manipuladores e violentos. Tratam mal os colegas dos filhos, os adversários e os árbitros. Fazem com que os próprios miúdos desistam do desporto. Em Portugal, não há estudos, mas nos EUA e na Suécia há muitos: 75% dos jovens abandonam o desporto. Em Portugal, arriscaria dizer que mais de 50% também", prossegue Vítor Santos.
Esta realidade submersa, que torna o fenómeno ainda mais preocupante em relação ao que já é público, é confirmado a O JOGO por vários dirigentes e treinadores de clubes e associações. "O principal problema da violência no futebol jovem são os pais. Batem uns nos outros, depois envolvem os miúdos. Incitam à violência e insultam os miúdos adversários. Tem havido muitos casos. O que se lê nos jornais é a ponta do icebergue", revela a O JOGO um dirigente de uma das maiores associações de futebol distritais.
"Há casos que são registados porque envolvem a polícia. Mas muitos não são porque as pessoas se conhecem. Conflitos, agressões verbais e físicas."
Vacina contra a violência
A mesma fonte elogia a iniciativa pioneira do SCUT - Sport Clube União Torreense, histórico do futebol português fundado em 1917 e com seis presenças na I Divisão (a última em 1991/92). "A escola de pais é um bom exemplo, que pode levar outros a seguir o método. É uma boa vacina para acabar com o vírus da violência", analisa fonte da Associação de Futebol do Porto.
Sem paralelo em Portugal, a escola de pais do Torreense vai arrancar até final do mês e assimilou ensinamentos da única estrutura conhecida no mundo - a "escuela de padres" do Getafe, fundada a 27 setembro de 2016.
Este projeto foi revelado por Fernando Agostinho, diretor de formação do clube e fundador do portal www.futeboldeformacao.pt, dedicado à criação e promoção de cultura desportiva. Que também sublinha o desconhecimento da verdadeira dimensão do fenómeno. "Há casos que são registados porque envolvem a polícia. Mas muitos não são porque as pessoas se conhecem. Conflitos, agressões verbais e físicas. Se no desporto profissional não há álcool, na formação não podemos andar a vender minis", acusa ainda, tocando numa ferida sintetizada na síndrome Cristiano Ronaldo - a pressão dos pais para que os filhos sejam todos vedetas internacionais da bola. "Vão para o futebol exteriorizar a frustração", junta.
"A escola de pais será lançada até final do mês", conta a O JOGO Rui Moura, psicólogo da formação do Torreense que coordena este projeto. "Há incidentes todos os fins de semana. São abafados pelos clubes e pessoas, que têm relações de cumplicidade.
Tem de haver uma consciencialização maior por parte dos clubes de informarem os pais do seu papel, que é de acompanhamento, integração do jovem e criação de todas as condições para que o atleta faça aquilo de que mais gosta: divertir-se a jogar futebol. Caso não aconteça, podem estar em perigo os escalões de formação", contextualiza.
"Se no desporto profissional não há álcool, na formação não podemos andar a vender minis."
"Promoverá um conjunto de encontros com os pais. Não se trata de ensinar, mas de os educar para educarem os filhos. Ainda não há definição de periodicidade das ações, algumas terão de suceder mais vezes, outras não requerem tanta frequência", diz Rui Moura.
A escola dirige-se aos 340 atletas da formação, a cerca de 700 pais e assenta em quatro pilares: psicológico (fornecer apoio e aconselhamento e competências psicológicas a pais, atletas e treinadores); ético (normas e valores associados à prática da formação); nutrição (informação sobre alimentação); e educação (acompanhamento e integração das atividades letivas com a prática desportiva).
DADOS
Praticantes: 150 mil, o universo de praticantes federados entre os sub-7 e os sub-19 em Portugal.
Formação: Há dois mil clubes (um pouco mais) que formam jogadores em Portugal, sendo a maior parte pequenas coletividades.
Certificados: são 860 os clubes que aderiram ao processo de Certificação de Entidades Formadoras da FPF, programa de qualificação na área da formação.
Desistências: Há 75% de jogadores que abandonam a formação nos EUA e Suécia, sendo a violência promovida pelos pais o principal fator.
Perspetiva: Estima-se que 50% dos jogadores em Portugal (não há muitos estudos) abandonarão a formação, segundo o embaixador do PNED, Vítor Santos.
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CASOS
6 janeiro - Ex-árbitro filmou briga
Agressões entre pais no jogo de iniciados (sub-15) que opôs o Real Massamá ao Despertar de Beja. O ex-árbitro Duarte Gomes publicou um vídeo nas redes sociais que tem milhões de visualizações.
12 janeiro - Feridos em Cascais
No jogo de infantis (sub-13) entre o Cascais e o Algés, os pais dos jogadores visitantes envolveram-se em confrontos e a polícia teve de intervir, tendo-se registado feridos.
13 janeiro - Luta com treinadores
Após o apito final de um encontro de juniores A (sub-19) entre a Académica e o Leiria, alguns pais de jogadores chegaram a vias de facto com treinadores.
Certificação é obrigatória para 2020/21 e clubes têm de cumprir
para a FPF os habilitar a disputar ligas jovens
Uma avaliação vai observar as práticas que promovam a ética desportiva. É forçosa a realização de ações com vista à implementação de novos comportamentos, em prol de uma nova cultura. Para participarem nos campeonatos nacionais jovens em 2020/21, os clubes têm de estar devidamente certificados pela Federação Portuguesa de Futebol até ao próximo ano.
"A crescente violência no desporto de formação, envolvendo os pais dos praticantes, tem sido dos temas mais abordados e discutidos pelo Grupo de Trabalho da Certificação", diz fonte oficial do organismo. "O novo modelo de Certificação de Escolas e Entidades Formadoras obriga-os a realizarem um conjunto de ações preventivas, que serão determinantes para implementar novos comportamentos e uma nova cultura desportiva no âmbito da formação em Portugal. Entre outras ações obrigatórias, realçamos quatro de carácter obrigatório: definição dos procedimentos de comunicação e atuação com os Pais e Encarregados de Educação; formação obrigatória para os Pais; estabelecimento de normas sobre a relação com os Pais e Encarregados de Educação dos praticantes; obrigatoriedade de Clubes/Entidades aderirem à Bandeira da Ética do PNED - Plano Nacional da Ética para o Desporto."
A crescente violência no desporto de formação, envolvendo os pais dos praticantes, tem sido dos temas mais abordados e discutidos pelo Grupo de Trabalho da Certificação", diz fonte da FPF.
Este processo de certificação é bem mais abrangente e obriga anualmente os clubes a fazer entre uma e três ações de formação para pais e quatro a seis por ano para os jovens jogadores. A FPF atribuirá estrelas (uma a cinco, numa plataforma online) consoante os objetivos concretizados pelos emblemas - também em matéria de instalações, medicina desportiva, recursos humanos e registo criminal. Neste caso, dos dirigentes aos treinadores, do roupeiro ao motorista, todos têm de ter cadastro limpo.
A certificação iniciou-se na época passada, mas começou a ganhar contornos obrigatórios na atual. As associações distritais fazem cursos com três técnicos, obrigatoriamente formados em Gestão, na área de treino e em Comunicação.
A FPF exige também que os clubes obtenham a Bandeira da Ética instituída em 2017 pelo IPDJ - também ciente de que "há muitos incidentes não registados" - e atribuída a departamentos ou clubes e federações cujas candidaturas comprovadamente se distingam por boas práticas que promovam a ética.