Nas últimas semanas, os adjuntos saíram do quase anonimato para tomarem o palco, por castigo dos chefes de equipa ou para se assumirem como técnicos principais. A relação dos homens do banco é feita de lealdade e competência, dizem, compatível com o longo caminho para trocar de pele e ver nascer um líder
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No clássico que encerrou 2021, quando Fábio Vieira marcou o primeiro golo ao Benfica, Sérgio Conceição não festejou. Ao lado dele, Vítor Bruno também não. Chocaram as mãos, num gesto de cumplicidade da dupla que, vista de longe, aparenta equilíbrio entre o caráter explosivo do chefe de equipa e a sobriedade do adjunto, esporadicamente exposta pelas obrigações mediáticas.
Um foi futebolista de elite, com uma brevíssima passagem como adjunto no Standard Liège (Bélgica); o outro, filho de treinador, destacou-se quando se licenciou com média de 18 valores na Faculdade de Ciências do Desporto e Educação Física da Universidade de Coimbra. O melhor aluno do curso começou como adjunto do pai, Vítor Manuel; cruzou-se com Sérgio Conceição em 2011 e estão juntos desde então.
Um terço dos treinadores da Liga Bwin conheceu a condição de adjunto antes de passar à liderança; nas últimas semanas, dois trocaram esse lugar discreto, quase anónimo, para se assumirem como líderes - Rui Pedro Silva no Famalicão e Tiago Sousa à frente do Santa Clara órfão de Nuno Campos, também ele um ex-adjunto que teve nos Açores a primeira experiência como chefe de equipa, depois de uma carreira brilhante ao lado de Paulo Fonseca.
O JOGO foi tentar perceber do que é feita esta relação e as respostas são claras: "lealdade" e "competência". Quem começa como adjunto para vir a ser chefe de equipa enfrenta um caminho longo. Quem o escolheu aponta-lhe uma riqueza ímpar.
Chamem-lhes assistentes
Nem todos os treinadores mantêm estes relacionamentos de longa duração como é o de Conceição e Vítor Bruno. Jesualdo Ferreira, 75 anos, teve nas sucessivas equipas vários nomes que hoje identificamos claramente como treinadores principais: Rui Águas, José Gomes, Rui Pedro Silva ou Nuno Espírito Santo contam-se entre aqueles em cujo processo de amadurecimento participou. "Não há um critério" para definir o adjunto, mas vários - o futebol é o momento, e ele determina também as escolhas. Para o professor, nem sequer há adjuntos. Não gosta do termo, "minimiza a função".
"Gosto de assistentes: assistem o nosso trabalho, têm de ter uma participação ativa; têm de ter voz e conhecimento para podermos, em conjunto, funcionar" clarifica quem, para abordar o tema, faz questão de recordar que assumiu, igualmente, o papel secundário. "Eu também fui adjunto, do Toni, no Benfica", sublinha, e recua ao Benfica de 1987 a 1989 e depois de 1992 a 1994 (seguiu-se ainda um ano em França, no Bordéus).
Jesualdo Ferreira e José Gomes conversaram com O JOGO sobre as particularidades dos treinadores adjuntos. Ambos experimentaram os dois lados da medalha, o de serem a voz de comando e a segunda voz
"Sei muito bem o que é ser um assistente. O que fui como assistente do Toni é o que desejo que sejam nas equipas técnicas comigo", diz quem acompanhou a evolução tremenda do futebol profissional, de "equipas muito pequenas" até às atuais, que ao adjunto somam outros especialistas - Rui Pedro Silva, que o seguiu no Málaga (Espanha) e, recentemente, deixou de ser o braço direito de Nuno Espírito Santo no Wolverhampton (Inglaterra) para comandar o Famalicão, foi observador, fez prospeção de jogadores e só depois se sentou no banco.
Ao longo do caminho, o professor foi percebendo nos assistentes o que o tempo confirmou. Rui Águas, que teve ao lado em Braga, "há quase 20 anos", e ultimamente no Santos (Brasil) e no Boavista, "tem um perfil claro para ser treinador principal". Já o demonstrou, e mesmo assim voltou a acompanhar Jesualdo Ferreira. "Percebi sempre que Nuno Espírito Santo viria a ser treinador", recorda; "o Zé Gomes era normal" que tomasse esse caminho", conta, e cita ainda "Rui Almeida, Nuno Almeida", entre outros exemplos de muitas horas de futebol, de laços cultivados a partir do "caráter" e da "competência", sujeitos a um "desgaste muito grande".
Um longo caminho
Ser treinador ou assistente a este nível implica ser sumariamente absorvido pelo futebol. É assim que José Gomes, 51 anos, a treinar o Al-Taawon, na Arábia Saudita, descreve os tempos que, "com muito orgulho", passou com Jesualdo Ferreira. "Foram seis temporadas e é uma coletânea de aprendizagens riquíssima, em cada reunião, cada conversa; almoçávamos juntos, passávamos tardes a conversar sobre futebol". Recorda-os com o mesmo entusiasmo com que lembra outros nomes de quem foi adjunto. A começar por António Jesus - um homem bom do futebol que partiu demasiado cedo -, a quem foi recomendado por um professor da universidade (José Neto) para o Paços de Ferreira. "Ia ser treinador da segunda distrital da AF Porto, do Gulpilhares", quando surgiu o aceno da Mata Real - o momento: "Só conheci o Jesus ao chegar lá". "Ao fim de uma semana", o outrora guarda-redes já tinha tirado a pinta àquele assistente dinâmico, participativo, e perguntou-lhe se queria ser treinador principal. A resposta foi afirmativa, com uma ressalva. "Reconheço que o meu trajeto no futebol não me permite pensar nisso no imediato, tenho de dar pelo menos dez anos", antecipou. Uma década como adjunto e vários treinadores depois, voltou à Mata Real para assumir o comando técnico, com a certeza de ter escolhido bem o caminho. "Aprende-se com todos, sempre emoções ao rubro, sempre a lutar por coisa, todo um turbilhão que faz com que o dia a dia seja riquíssimo ao nível da aprendizagem", entusiasma-se de novo.
Vida a dois contra o mundo
A forma apaixonada como José Gomes ou Jesualdo Ferreira vivem a profissão não deve criar ilusões. Ambos alertam para o "desgaste permanente" que a "tensão" quotidiana provoca nesta relação em que o chefe tem a última palavra. Há momentos em que é posta à prova e, por vezes, a "necessidade de respirar" outro ar desfaz as equipas. José Gomes - que já teve como adjuntos Paulo Duarte e Vítor Campelos, hoje técnicos principais - tem feito o caminho com Jorge Mendonça, um "amigo de longa data".
Conheceram-se na universidade e estão juntos desde 2012. A amizade é um predicado extra para o sucesso de uma equipa. Quando se lhe pergunta qual o principal, José Gomes protesta que "só um" é curto; reclama, "pelo menos, dois". "Competência pode não ser suficiente, se não houver lealdade", explica: "Estamos expostos a muitas pressões e agressões. Isto não deixa de ser uma guerra, a palavra tática vem da estratégia militar; estamos numa guerra desportiva e é importante, até pela relação - boa ou má - com aqueles que vivem à volta do jogo e das equipas, ter pessoas em quem possamos confiar, a todos os níveis, com caráter, honestidade".
E quando chega o momento de o adjunto se assumir como líder? Para Jesualdo Ferreira, "é evidente que todo o treinador assistente que está numa função que não é tanto de decisão definitiva tem toda a legitimidade para ser treinador principal".
Assim começou João Pedro Sousa
Vai para três épocas, o Famalicão voltou ao escalão principal, após longa ausência, e anunciou como treinador um desconhecido: João Pedro Sousa, até então adjunto de Marco Silva, assumiu pela primeira vez a liderança. O resultado foi um campeonato sensacional, que acabou à beirinha dos lugares europeus, com uma equipa bem oleada, alegre, um futebol que cativava. "Aquele" Famalicão ganhou rapidamente o respeito para o treinador, hoje a descansar da passagem pelo Boavista. É com gosto que fala dessa relação.
"Tem de ser forte, de uma lealdade e transparência muito grandes". "O que se pede ao casamento pede-se a uma equipa técnica", admite, e a metáfora estende-se à separação. No caso de Marco Silva, "foi muito pacífico". "Achei que era o melhor, a altura certa", depois de muitos "passos certos" foi dando "devagar". Transmitiu-o ao chefe de equipa "com uma antecedência muito grande", mas nem por isso deixou de haver nostalgia, ao cabo de um percurso tão bom, de 2012 a 2019, do Estoril ao Everton (Inglaterra), com equipas que encantaram. Mesmo quando somos empurrados para o que mais queremos, as separações custam: "Tristes ficámos os dois, tenho um orgulho muito grande no trabalho que fiz com ele."