Há 45 anos, o país gritava democracia e o Sporting foi protagonista: deu palco ao ato final público da ditadura, andava pela Europa quando a revolução estalou e ganhou a dobradinha de 1973/74
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O 25 de abril faz 45 anos e não há símbolo desportivo mais associado do que o Sporting ao período imediatamente antes e logo após o golpe militar que fez a democracia gritar liberdade em Portugal. A casa dos leões serviu de palco ao último banho de multidão do Presidente do Conselho, Marcello Caetano, no estertor do regime, a equipa verde e branca não conseguiu entrar no território nacional enquanto decorria a revolução, ficando retida do lado de lá da fronteira com Espanha quando regressava da "defunta" RDA, e o Sporting venceu o primeiro campeonato de Portugal desacorrentado da ditadura exatos 24 dias após a morte do regime, em pleno Barreiro, terra onde o operariado reinava.
A tudo isto, os lisboetas adornaram com as suas cores os primeiros grandes momentos desportivos logo a seguir a Abril com a vitória na final da Taça sobre o arquirrival Benfica, num Estádio Nacional - obra icónica do Estado Novo - preenchido por militares e consumido pela aliança Povo-MFA. O JOGO falou com quem viveu esses dias únicos.
Alvalade no adeus à ditadura
A 31 de março de 1974, o Sporting viu a sua liderança tremer. Os leões sofreram uma dura derrota por 5-3 aos pés do Benfica, resultado retumbante que parecia relançar um campeonato que tinha no Vitória de Setúbal de Pedroto uma força a ter em conta - os sadinos terminariam mesmo a competição em terceiro posto, atrás dos rivais de Lisboa. Mas essa goleada ficou marcada por outro facto. Marcello Caetano quis aproveitar a multidão que assistia ao dérbi para encenar uma demonstração de força do regime, após o fracassado Golpe das Caldas que agitou os alicerces da ditadura. Acompanhado por João Rocha, líder dos leões, o então Presidente do Conselho recebeu uma ovação do público. O Sporting saiu derrotado, tremeu na liderança, mas haveria de a manter. O regime julgou sair vencedor, mas só teria mais 25 dias de vida.
O presidente leonino João Rocha, empresário proeminente, teve um mandado de captura em seu nome durante o PREC e foi salvo pelo capitão de Abril Vasco Lourenço
Revolução em Espanha...
A 25 de abril, o Sporting acordava distante, num país que também já é uma memória longínqua: a República Democrática alemã. Horas antes no terreno do Magdeburgo, os leões tinham falhado por um pontapé o acesso à final da Taça das Taças - Tomé errava com clamor o que seria o 2-2 que apurava a turma portuguesa. Primeiro os leões foram informados pelo próprio presidente João Rocha de que havia uma revolução a eclodir em Portugal, seguiram para Berlim e daí para Frankfurt, onde o balcão da TAP estava encerrado - todo o acesso a Portugal por ar, terra ou mar, se fechara. Em sobressalto, sem mais informações, temendo até o pior, a comitiva chegou exausta a Madrid e seguiu ainda mais cansada e esfaimada a Badajoz. Só a 26 de abril entrou num país livre e para sempre diferente. Fernando Tomé, que falhou por centímetros o golo que daria a final da Taça das Taças, lembra a travessia épica. "Mal passámos o Muro de Berlim, João Rocha, que vinha de carro à nossa frente, parou, entrou no autocarro e disse: "Venho só alertar que houve um golpe de Estado." Depois, já no aeroporto, os únicos dados que havia eram da BBC e falava-se em milhares de mortos e feridos. Só pensávamos em tiros e tanques para a esquerda e para a direita, quando ouvimos um desabafo de um adepto: "Eh, pá, e eu deixei o carro na Baixa." Levaram-nos para a Ibéria e fomos para Madrid, e seguimos de autocarro para Badajoz, onde não nos deixaram passar, tivemos de dormir onde pudemos. Às oito da manhã, via rádio, o presidente João Rocha conseguiu desbloquear a situação e lá conseguimos passar. Um toureiro, que também estava no aglomerado de carros que não conseguia passar, aproveitou e seguiu logo atrás de nós para ir buscar as coisas a Elvas e voltar para Espanha, porque tinha corridas acertadas. Só em Elvas é que conseguimos comer qualquer coisa. Deixaram-me à entrada de Setúbal, como era habitual, apanhei boleia de um amigo meu, que me explicou tudo: "É uma festa, os soldados andam pelas ruas com cravos"", recorda Tomé.
Dobradinha democrática
De volta às provas domésticas e com Portugal inteiro ainda a tirar medidas ao fato da liberdade, o Sporting de 1973/74 e dos 46 golos de Yazalde disparou para o título, confirmado com uma vitória obtida em casa do Barreirense por 3-0. A turma comandada por Mário Lino sagrou-se a primeira campeã em democracia, mas tinha de se haver com um Benfica sedento de desforra no Jamor. Mau sinal: Yazalde estava isento de jogar na Taça de Portugal ao abrigo de um acordo com a federação argentina - teria de estar em forma para o Mundial de 1974, no qual, de resto, foi titular. Pior sinal: Mário Lino travou-se de razões com João Rocha na véspera da final e a equipa viu-se e desejou-se para derrubar o arquirrival. Nené adiantou o Benfica no marcador aos 32", Chico Faria igualou aos 88" e Marinho resolveu no prolongamento, aos 107". Para a posteridade ficou a imagem do Presidente da República, o General António de Spínola, a entregar o troféu a Vítor Damas, que a ergueu como se fosse um bastão da liberdade. Antes e depois, a festa da Taça e todo o Vale do Jamor confundiram-se com o camuflado das tropas. Essa final da Taça de Portugal de 9 de junho de 1974 foi a terceira maior manifestação em massa de exaltação da Liberdade na zona de Lisboa, logo a seguir ao próprio golpe e às celebrações do 1.º de Maio.
"Fiz os jogos todos até lá, mas antes da final lesionei-me e não joguei no Jamor", lembra Carlos Pereira. "Mas estive lá, houve um ambiente fantástico até porque fomos campeões nacionais, chegámos às meias-finais da Taça das Taças, Yazalde foi Bota de Ouro... Foi uma época fantástica que, daí para agora, não houve igual", considera o ex-jogador.
Pós revolução, ou como "fintar" o PREC
A revolução foi feita de cravos, mas nem tudo foram rosas. Nos meses que se seguiram ao 25 de Abril, a instabilidade política e a divisão no seio das forças armadas estiveram quase sempre na ordem do dia e, de 11 de março a 25 de novembro, entrou-se no Período Revolucionário em Curso (PREC). A fragmentação e os confrontos entre moderados, reacionários e revolucionários radicais raiaram mesmo o perigo de guerra civil. Portugal era alvo da atenção e preocupação geoestratégica das principais potências mundiais e o grande capital, os latifúndios, a cintura empresarial, o empresariado foram atacados. As nacionalizações, ocupações e outras movimentações a pretexto da democracia atingiram o nível do desmando. Parte substantiva de gestores e empresários vistos como coniventes com a ditadura estavam presos sem julgamento ou fugiam do país, João Rocha era encarado como rosto do capitalismo execrado e soube que tinha um mandado de captura em seu nome. O então presidente do Sporting escapou à detenção às mãos do COPCON... por estar ausente do escritório e foi salvo por Vasco Lourenço. Disso mesmo, de resto, deu conta o capitão de Abril em entrevista a O JOGO em 2014: "Conheci-o em 1974. Mais tarde, ele disse-me que ia ser preso. Não queria sair do país, mas desejava saber as regras do jogo. Fui ver o que se passava e disse-lhe: "Esteja descansado que ninguém o prende. Se tentarem, fale comigo!"" Tal como convidara Marcello Caetano à tribuna de Alvalade, João Rocha conseguiu levar Vasco Lourenço e outras figuras do então proeminente Conselho da Revolução ao reduto do leão.
Os anos pós-revolução viram o Sporting crescer no seu ecletismo, mas a sua capacidade de conquista no futebol, já segunda atrás do Benfica a partir dos anos 1960, dissipou-se. Vinha aí o FC Porto. No país nada mais foi igual. No panorama desportivo também não. Mas o Sporting ficou como o campeão de Abril.
Cenas de mudança
Último banho de multidão de Marcello
Após o falhanço do Golpe das Caldas, o Presidente do Conselho Marcello Caetano assistiu a um Sporting-Benfica (3-5) em Alvalade para mostrar que o Estado Novo ainda respirava. Só durou mais 25 dias...
Exaltar a liberdade na final da Taça
Obra do Estado Novo, o Estádio Nacional serviu de primeiro palco desportivo de festejo da democracia. O recinto ficou rebordado de povo e militares.
Leões sofreram pela dobradinha
Campeão, o Sporting conteve a desforra do Benfica. Após o 1-1 registado nos 90", tudo se resolveu no prolongamento, com o golo triunfal de Marinho.
Chirola esperou mais por democracia
Craque do Sporting, Chirola Yazalde viu a democracia em Portugal. Na sua Argentina, a ditadura, de cariz militar, voltou em 1973 e só terminaria dez anos depois.