Sobrecarga do calendário: futebolistas em risco
Ser jogador de futebol é um sonho para muita gente, mas será mesmo esta vida um mar de rosas nos tempos que decorrem? De acordo com o mais recente relatório da FIFPRO, mais de metade dos jogadores inquiridos revela ser submetido a sobrecarga de trabalho. O que, como alertam os especialistas, aumenta o risco de lesões e a saúde mental. As queixas dos atletas são conhecidas, mas nada parece melhorar.
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Considerado por muitos como "o desporto rei", o futebol consegue parar uma nação inteira durante 90 minutos. É tema de conversa nas várias tascas durante horas. Conta histórias e conta com um toque de imprevisibilidade. O futebol tem tudo isto e muito mais. Nos últimos anos, tem-se assistido a uma evolução acutilante no futebol: a evolução tática, a dinâmica do jogo, as especializações técnicas, os jogadores, os momentos do jogo, a arbitragem, a vibração dos adeptos... Tudo contribui para o seu funcionamento. No entanto, esta evolução também envolve um lado negativo, como comprovou o relatório "Excessive Work load Demands: Player Performance, Recovery and Health", realizado pela Federação Internacional de Jogadores Profissionais (FIFPRO) e divulgado a 5 de setembro de 2024. O estudo monitorizou 1500 jogadores em diversas partes do mundo e concluiu que 54% dos atletas revelam ter experienciado situações de excesso de carga horária de trabalho ou elevadas, durante a época de 2023/2024, especialmente nas mãos das massas associativas mais importantes do futebol.
A sobrecarga do calendário desportivo tem levado vários jogadores a manifestarem publicamente o seu descontentamento. O médio belga e capitão do Manchester City, Kevin de Bruyne, salientou, em conferência de Imprensa antes do jogo contra a seleção do Israel a contar para a atual edição da Liga das Nações, que existe um descontrolo do número de jogos e que os responsáveis são as maiores organizações do desporto. "As associações de jogadores tentaram arranjar soluções. O problema é que a UEFA e a FIFA fazem mais jogos e nós podemos tentar dizer alguma coisa, mas nenhuma solução foi encontrada. Eles não se importam. É o dinheiro que fala", acusou.
O vencedor da Bola de Ouro de 2024, Rodri, atual jogador do Manchester City, frisou a possibilidade de avançar para greve numa conferência de Imprensa em antevisão ao jogo contra o Inter de Milão, a contar para a 1ª jornada da presente edição da Liga dos Campeões: "Sim, estamos perto disso. É a opinião geral dos jogadores e, se continuar assim, não teremos alternativa. Penso que é algo que nos preocupa, verdadeiramente. Somos nós que sofremos."
Idolatrados num momento, odiados noutro. Basta abrir as redes sociais ou ouvir os comentadores desportivos para perceber que é algo frequente na vida dos jogadores, mesmo que se dediquem e deem tudo dentro e fora do campo. Muitos olham para o dinheiro que os atletas recebem e perguntam se terão mesmo razão de queixa. Segundo a FIFPRO, a resposta é afirmativa. No dia 14 de outubro do ano passado, esta entidade e a Associação de Ligas Europeias, presidida na altura por Pedro Proença, atual presidente da Federação Portuguesa de Futebol (FPF), apresentaram uma queixa formal na Comissão Europeia contra a FIFA devido à sobrecarga do calendário internacional. As organizações defendem que "o calendário saturado coloca em risco a segurança e o bem-estar dos jogadores, assim como ameaça a sustentabilidade social e económica das competições nacionais".
O problema do excesso de jogos
Um dos muitos problemas abordados no relatório da FIFPRO é o excesso de jogos. O alargamento de competições já existentes como a Liga dos Campeões e o Mundial de Clubes FIFA causou um aumento no número potencial de jogos a disputar, o que levou a uma sobrecarga do calendário. João Amaro, atual fisioterapeuta do Clube de Futebol Estrela da Amadora, adverte que "esta sobrecarga não traz nada de positivo para a condição física dos jogadores" e reforça ainda que "com a Liga Das Nações e o alargamento destas competições, os jogadores de topo que estão na luta por todos os troféus vão acabar por sofrer mais".
Segundo o mesmo relatório, 88% dos treinadores de futebol acreditam que um jogador não deve ser disputar mais de 55 partidas. Apesar disto, dados da plataforma de monitorização da carga de trabalho dos jogadores, também pertencente à FIFPRO, confirmam que grande parte destes jogadores disputa entre 60 e 70. Em adição ao número de jogos, o tempo de descanso é algo também referido, e, tendo em conta os compromissos de clube e Seleção, os jogadores não conseguem ter o
repouso recomendado. Os treinadores de alta performance defendem ainda que deve haver, no mínimo, quatro semanas de descanso entre épocas. "Entre três e quatro semanas é o ideal. O importante é os jogadores poderem-se desligar completamente para conseguir estar com a família e amigos e voltarem mentalmente preparados para a pré-época", refere João Amaro. Emásio Amaral, fisioterapeuta de escalões de formação, acrescenta ainda que "os jogadores que normalmente não têm este descanso costumam realizar treinos à parte para não quebrarem fisicamente".
Um fator que causa bastante alarido por parte dos jogadores é a disputa de jogos back-to-back. "Isto é demasiado. Jogamos 120 minutos em menos de três dias", afirmou Bernardo Silva, jogador do Manchester City e internacional português, numa entrevista ao jornal inglês SkySports após avançar para a final da Taça de Inglaterra no ano passado.
O estudo da FIFPRO conclui que os jogadores não deviam disputar mais de seis jogos back-to-back. Atualmente, chegam aos dez jogos, o que pode levar a uma série de consequências na saúde do jogador mencionadas no relatório, como: interrupção de sono; fadiga pela grande quantidade de viagens; o aumento do risco de lesões e graves problemas psicológicos. Questionado sobre a recuperação dos jogadores pós jogo, João Amaro indica quais considera serem os fatores que influenciam a recuperação pós-jogo de um jogador. "A sua posição, a idade ou o tempo em campo, mas diria que, fisiologicamente, o tempo médio de recuperação está entre 48 e 72 horas." Emásio Amaral considera também que "72 horas é o mínimo de tempo possível de recuperação total". O mesmo fisioterapeuta acrescenta ainda que "o sono, uma boa hidratação e uma boa nutrição são alguns dos pilares chave para uma boa recuperação".
Excessos com consequências graves
O aumento do número de jogos não afeta apenas os jogadores mais velhos. O estudo da FIFPRO demonstra que, a longo prazo, o esforço excessivo pode ter consequências na longevidade das carreiras dos jovens jogadores. As projeções do número de partidas na carreira mostram que os atuais jovens talentos do futebol, como Jude Bellingham, Jamal Musiala, Kylian Mbappé ou Pedri, vão disputar muitos mais jogos do que os respetivos antecessores, o que leva ao aumento do risco de lesões e ao possível decréscimo no rendimento mais cedo do que o esperado, devido à elevadíssima carga de trabalho. "Se a tendência de aumentar o número de jogos e
de competições e de reduzir o tempo de descanso continuar, vai acabar por gerar um ciclo de sobrecarga crónica que além de influenciar o desempenho dos jogadores e a saúde dos mesmos, ameaça também a sua longevidade de carreira", afirma o atual fisioterapeuta do Estrela da Amadora. "Acredito que podemos voltar a ver mais jogadores a acabar a carreira por volta dos 30 anos", reforça. Já Emásio Amaral apresenta uma visão mais positiva no que toca ao futuro dos jovens jogadores: "Acredito que tenham uma maior incidência de lesões. No entanto acho que a qualidade de jogo não será afetada porque existem grandes profissionais dentro destas estruturas que sabem trabalhar na gestão das cargas de uma forma ideal."
Os jogadores também ficam condicionados quanto às suas vidas privadas. O relatório da FIFPRO estudou o tempo de trabalho/comprometimento anual com o clube; o tempo de descanso/ vida privada; e o tempo em comprometimento com a respetiva seleção nacional do capitão do Paris Saint Germain, Marquinhos, durante a temporada de 2022/2023, que contou com a participação no Mundial do Catar, e concluiu que o jogador esteve 253 dias em compromissos com o clube e 40 dias em compromissos com a seleção, o que equivale a 80% de tempo em trabalho, restando apenas 72 dias de descanso e recuperação, o que equivale a 20% de tempo para a sua vida privada.
Como consequência da falta de tempo para o lazer, o tempo em família e o descanso, existem ainda exemplos de jogadores, que optam por se reformar das seleções nacionais muito cedo. Um caso recente foi o do jogador do SL Benfica, Fredrik Aursnes, que deixou a seleção da Noruega aos 28 anos. Em declarações à Imprensa afirmou: "Quero ter mais tempo e liberdade para priorizar outras coisas da minha vida do que o futebol". Este tipo de decisões tem sido constante no atual panorama do
futebol. Os jogadores começam a optar por não jogar competições internacionais para conseguirem ter mais tempo de descanso. "Eu adorava ter jogado o Euro 2024 e espero que um dia isso aconteça, mas tive a minha pausa mais longa desde 2017, portanto isso foi bom. O meu corpo está completamente descansado e pronto para a nova temporada", disse Erling Haaland, avançado do Manchester City, em conferência de imprensa do jogo contra o Milan, a contar para o estágio de pré-época nos Estados Unidos, da presente temporada.
O aumento das lesões
Com o acréscimo dos jogos veio também o aumento das lesões. Segundo o Howden Men"s European football injury index, o número de lesões por época tem vindo a aumentar desde 2020/21. Na época passada, chegou a atingir 4123. Um estudo presente no relatório da FIFPRO refere ainda que os jogadores lesionados tinham uma carga de trabalho muito superior antes das lesões quando comparada à dos jogadores não lesionados. Isto inclui mais aparições, mais jogos back-to-back e menos tempo de descanso. Emásio Amaral considera que a gestão das equipas é crucial para a prevenção de lesões: "Às vezes, os jogadores lesionam-se por conta de pequenos movimentos devido ao alto nível de fadiga. É importante haver uma gestão e apostar em jogadores jovens ou até mesmo em jogadores com menos minutos. Se existir uma ótima rodagem do plantel, haverá uma melhor proteção de um determinado jogador, averiguando assim uma possível lesão."
Para além das consequências físicas, as lesões podem afetar ainda a saúde mental dos jogadores. "Enquanto fisioterapeuta, acompanho o processo todo desde o momento da lesão até à reintegração na equipa. Há jogadores que têm medo de não recuperar a forma física ou de se voltarem a lesionar, e nós como profissionais de saúde que passamos mais tempo com eles nessa fase de lesão temos de ter uma maior sensibilidade e atenção", considera João Amaro.
O atual fisioterapeuta do Estrela coloca ainda a responsabilidade nas entidades reguladoras: "Tem de haver mesmo um reposicionamento estratégico por parte das entidades responsáveis pelo futebol para colocarem a saúde dos atletas em primeiro lugar antes que os danos sejam irreversíveis. Caso isto não aconteça, prevejo um futuro escuro no que toca à saúde dos jogadores."
A utilização e rotação dos jogadores
Nos últimos tempos, os treinadores têm vindo a sofrer com a escolha dos jogadores, especialmente em situações de emergência de resultados. A FIFPRO realizou, no seu relatório, um questionário em que abordava a questão dos treinadores utilizarem os jogadores, mesmo sabendo que estavam condicionados, durante a temporada de 2023/2024. O questionário concluiu que 54% dos jogadores confirmam ter sido forçados a jogar, mesmo estando condicionados com uma lesão específica. Por outro lado, 82% dos treinadores assumem que utilizaram jogadores em necessidade de descanso e sabiam que estes precisavam de descansar. Porém, a urgência de resultados positivos levou à sua convocação.
Filipe Martins foi treinador do Clube de Futebol Estrela da Amadora, Casa Pia Atlético Clube e, mais recentemente, Wuhan Three Towns. Confrontado com a questão do questionário da FIFPRO, afirma que "cabe ao treinador ajustar a questão dos resultados para conseguir dar mais descanso aos jogadores." Na emergência de resultados, são sempre os mesmo a encherem os relvados. "Utilizamos sempre os melhores jogadores, mesmo que às vezes não estejam a cem por cento", admite.
O aumento do número máximo de substituições por jogo de três para cinco foi uma medida tomada pela FIFA durante a pandemia e que dura até à atualidade. No entender de Filipe Martins, "foi uma medida excelente e só peca por ter sido um pouco tardia". O treinador compara algumas medidas implementadas no contexto internacional: "Por exemplo, na China pode-se convocar 23 jogadores, enquanto em Portugal apenas 20. Estas pequenas medidas facilitam muito no conforto e na motivação do plantel. Para além disso facilitam-me imenso quanto às escolhas a fazer, tendo em conta que posso convocar mais jogadores."
Filipe Martins é da opinião que "o calendário para equipas que jogam apenas competições nacionais está bastante justo. E conclui com a ideia de que o esforço exagerado é um mal inevitável da profissão: "Compreende-se que seja difícil orientar jogadores de equipas que disputam competições europeias, para além daqueles que ainda jogam na Seleção Nacional. Estes atletas estão sujeitos a uma carga exagerada, mas ser jogador de futebol é assim, uma profissão de desgaste rápido".
OS AUTORES
André Neves
Nascido e criado em Lisboa, André Neves é, desde sempre, um apaixonado pelo desporto. Atualmente, termina o 1ºano da licenciatura em Jornalismo, na Escola Superior de Comunicação Social (ESCS). Quando terminar o curso, ambiciona singrar no mundo do jornalismo desportivo.
Miguel Sêco
Natural de Carcavelos, Miguel Sêco estuda Jornalismo, na Escola Superior de Comunicação Social (ESCS), do Instituto Politécnico de Lisboa (IPL). Quando terminar a licenciatura, pretende ainda acrescentar formação nas áreas de arbitragem futebolística e de treinador de futebol, aprendizagens que entende serem uma vantagem no exercício do jornalismo de desporto, ao facilitarem a compreensão da parte tática do jogo.