BOLA DE TRAPOS - Opinião de Miguel Carvalho
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Quando, depois de marcar um golo ao Vitória, o maliano Moussa Marega, revoltado com o racismo ululante macaqueado nas bancadas, recusou continuar em jogo e abandonou, decidido, o relvado do estádio de Guimarães, lembrei-me dos homens que trocam a fama por justiça. Conheço outro dessa estirpe, a pouca distância do Estádio do Dragão.
Há uns anos, recebeu, das mãos dos deputados, o Prémio Direitos Humanos do Parlamento pelo seu trabalho como assistente social. Agradeceu as palmas, mas aproveitou a ocasião para reclamar outro modelo de País e veio-se embora. Para a troca, deixou ficar a medalha. Se tentaram convencê-lo a voltar atrás, rapidamente perceberam que não valia a pena. Digamos, foi Marega antes de Marega. E notícia em todo o lado. Não apenas pelos seus méritos, mas sobretudo pelo gesto.
O nome dele é José António Pinto, mas todos o conhecem por "Chalana". A alcunha é a sua pele, tão irónica como verdadeira. Ao contrário do antigo ídolo do Benfica, era tosco para o futebol e, por isso, motivo de risota entre amigos. Mas, tal como o verdadeiro Chalana fazia em campo, este também passa a vida a driblar preconceitos em territórios de exclusão, indo sempre para cima dos adversários. Sobretudo, os mais poderosos.
Devemos agradecer o facto de "Maregas" e "Chalanas" existirem na nossa vida. São "rebeldes competentes", espécie rara cunhada pelo sociólogo Boaventura Sousa Santos. Não se resignam ao preconceito alimentado pelo senso comum, nem a palavras mansas. Enfrentam-no, partem a loiça e, quando damos por isso, já não estamos a falar deles, mas do que fizeram em nome de algo maior do que eles.
Marega cresceu num bairro dos subúrbios de Paris, onde racismos étnicos e sociais se confundem e até fazem parelha. Há muito disso por aí, de fato e gravata, bem menos do que nas bancadas dos estádios.
"Ninguém dá nada às pessoas de Ulis ou de Évry, temos de lutar por tudo aquilo que queremos", disse o jogador, certa vez, recordando esses dias. A frase podia ter sido dita pelo "Chalana" de Campanhã a propósito do Lagarteiro ou dos utentes que resgata ao silêncio e à indignidade.
O atleta podia ser mais um na lista dos que aturam o indizível vindo das bancadas e seguir em frente, mas escolheu, intempestivo, "falar" por muitos. O assistente social talvez devesse seguir as regras, colecionar coitadinhos, arrecadar subsídios e adotar o discurso assistencialista, mas escolheu transformar a sociedade em que vive. Marega e "Chalana" não se conhecem, mas jogam na mesma "equipa".
Recusam ser estatística, resignar-se. Por vezes, até são incompreendidos entre os seus, mas não pedem licença para esticar a corda e marcar golos difíceis, quase impossíveis. Em nosso nome.
Como seria de esperar, o caso Marega deu azo a outros preconceitos. Pelos vistos, só falta defender um cordão sanitário à volta de Guimarães. A pretexto de umas figuras rupestres sem trela, estigmatizam-se populações e territórios inteiros. Marega e "Chalana" devem saber do que falo, ou não fossem doutorados nas consequências dessas narrativas. Tal não invalida que o Vitória olhe para dentro e discuta o problema. Mas pode dizer-se o mesmo de outros para quem o preconceito é utilitário: depende dos dias, das circunstâncias e da cor das camisolas.
Guimarães, digo-o com conhecimento de causa, não é aquilo. De todo.
Mas parte do que se leu por estes dias servirá para enxofrar o ambiente em relação a uma cidade que resiste ao pensamento único no futebol: esse que obriga a torcer pelos vencedores do costume. Alguns, muito letrados, deviam saber que o País desportivo é um paiol e até trampolim político. Diabolizem-no e depois queixem-se.