Mostar situa-se no sul da Bósnia-Herzegovina e é palco de uma das maiores rivalidades, não só política e religiosa, mas também futebolística. Zrinsjki e Velez protagonizam um dos dérbis mais escaldantes
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O centro histórico de Mostar é marcado pelo calor abrasador. São ruas estreitas cheias de brilho, mesmo depois de o sol se pôr, e repletas de turistas que se deliciam com as iguarias da região nas esplanadas. É riqueza cultural que tem como auge a famosa Ponte Velha sobre o rio Neretva. Perante tamanha calma, é difícil acreditar que, ainda não há muito tempo, a região foi uma das mais destruídas durante um conflito armado. Em 1993, a famosa ponte, hoje repleta de turistas e iluminada pelos flashes das máquinas fotográficas, foi arruinada durante a Guerra da Independência da Bósnia.
Após o fim da Jugoslávia socialista, o regime comunista foi substituído por uma coligação de três partidos étnicos na atual Bósnia-Herzegovina. Eslovénia e Croácia declararam a independência, o que fez surgir tensões significativas entre a população: os sérvios eram favoráveis a que a Bósnia-Herzegovina continuasse a fazer parte da nova Jugoslávia. Os bósnios e os croatas muçulmanos desejavam a independência. Esta segunda fação declarou a independência da Bósnia-Herzegovina com um referendo realizado a 3 de março de 1992, que acabou boicotado pelos sérvios, que criaram a própria república. As divergências escalaram, levando à morte de milhares de pessoas, e só pararam por pressão dos EUA e com a assinatura de um tratado de paz, em 1995.
A ponte, que remonta ao Império Otomano do século XVI, foi reconstruída em 2004, unindo simbolicamente povos que outrora estiveram em guerra. Mas só simbolicamente. A tensão e as divergências políticas, bem como religiosas, ainda pairam, as cicatrizes continuam por sarar e são revividas, principalmente, no futebol. Enquanto do lado direito são visíveis vários equipamentos do Zrinjski Mostar, adversário que hoje mede forças com o Vitória de Guimarães e é apoiado pela população croata da cidade, basta passar a ponte para a margem esquerda para o nome do emblema ser proibido e, até, odiado. Deste lado, são as camisolas do FK Velez, clube de bósnios e de uma nação jugoslava com uma tradição islâmica, que ganham protagonismo.
Sentado a um canto de uma das muitas lojas e perto da ventoinha para tentar lutar contra o calor, Kenan Jerlagic recebe os clientes sorridente. Vende apenas artigos desportivos, desde camisolas a cachecóis. “Este é o meu trabalho”, explicou ele. À entrada, está o equipamento do FK Velez, clube que apoia desde sempre, a destacar-se em relação aos outros. E, quando se fala no Zrinjski Mostar, torce o nariz: “Odeio esse clube. Não gostamos de croatas, ainda mais quando já roubaram o nosso estádio.” Kenan refere-se ao ano de 1995, quando pouco depois de o Velez inaugurar o Estádio Bijeli Brijeg, na parte oriental da cidade, o mesmo ter sido ocupado pelo Zrinjski, que estava impedido de competir desde a Segunda Guerra Mundial, por ter participado em competições da liga na Croácia, então dominada pelo fascismo. O jovem comerciante ainda não era nascido na época. Mas tal facto não o impede de defender o seu lado da margem. “Este é um dos muitos motivos pelos quais não gostamos desse clube. E estão mesmo proibidos de dizer o nome dele na minha loja”, diz, em tom bem-humorado.
Apesar da rivalidade, Kenan não esconde que vê jogos do Zrinjski. Nem que seja para torcer pela derrota: “Não tenho nada contra os atletas ou presidente. Não gosto do clube, mas respeito-o. E gosto de futebol, por isso não deixo de ver os jogos. Mas claro, espero sempre que eles percam. Ainda quando jogaram em Guimarães, vi. O Vitória jogou mesmo bem e ganhou justamente. Só tive pena que não tivesse ganho por mais!”.
Quanto ao jogo de hoje, o jovem torce, claro está, pelos vitorianos. “Que marquem o máximo de golos que conseguirem. Se ganhassem 10-0, seria uma pessoa muito feliz. Quero é que sejam eliminados, não merecem estar ali. Toda a sorte do mundo para o Vitória! Vou ver e estar a torcer pelos portugueses!”, vinca, enquanto se levanta para ajudar um jovem cliente cujo desejo é comprar uma camisola do Real Madrid.
Há mesmo uma ponte que os separa.