Juan Cambre desfia memórias de uma transferência feita a todo o transe e da ligação forte à cidade de Matosinhos. Um galego, a caminho dos 80 anos, e os registos de uma chegada como craque ao emblema de Matosinhos na época de 1964/65. Tinha 18 anos e era acarinhado como um filho no balneário.
Corpo do artigo
A caminho dos 80 anos, em Villagarcía de Arousa vive uma memória prodigiosa do futebol galego, um talento desconcertante que prendeu olhares dos grandes da Galiza, foi fisgado pelo Real Madrid, mas acabou por assinar, em 1964, pelo Leixões, entrando com 18 anos num balneário que tinha alguns dos heróis da conquista da Taça de Portugal de 1960/61, como Rosas, Jacinto, Raul Oliveira, Santana, Ventura ou Oliveirinha, e outros que tinham chegado, como Carlos Duarte, Manuel Duarte ou os brasileiros Bené e Wagner Canotilho. Falamos de Juan Cambre, um extremo de técnica apurada, drible fácil, descoberto por Pedroto, então com 36 anos, quando se celebrava um jogo na terra galega, envolvido nas relações já na época privilegiadas entre Matosinhos e Villagarcía de Arousa, que comungam da mesma tradição piscatória e que se germinaram enquanto concelhos em 1959.
Em 1964/65, o Leixões mantinha um astral importante na I Divisão, um leque vasto de jogadores da casa e muita paixão por detrás, começando a época, praticamente, com dois jogos frente ao Celtic, na Taça das Cidades com Feira, que se viria a transformar em Taça UEFA. Foi em cima da deslocação a Glasgow que Cambre chegou a Matosinhos, numa operação com diligências muito cuidadas e exigentes. Descobrimo-lo para uma bonita conversa, ele que foi homenageado em 2023 por uma delegação de Matosinhos e Leixões, que foi até junto da ria de Arousa, chefiada por Henrique Calisto. “O Leixões veio cá jogar, eu atuei só a primeira parte. Era pré-temporada e sei que começaram logo as negociações até se dar a transferência. Foi um processo complicado, já tinha muitas ofertas desde os 15 anos, atuando pela seleção galega. Eu achava que ia estar preso ao Arousa até aos 21 anos, porque nunca havia acordo para o Celta, Depor ou Pontevedra; uns diretores que eram mais do Celta não me deixavam ir para o Depor, os que eram mais Depor não me deixavam rumar ao Celta e andava nisto. O Real Madrid também se interessou e sei que abriram a boca e pediram muito dinheiro”, recorda Cambre, agarrado por uma comitiva do Leixões que se deslocou a Villagarcía para trazer o craque galego da III Divisão de Espanha para o primeiro escalão de Portugal.
Joaquim Queirós, saudoso jornalista, era um dos homens desse raide, que narrou a operação nas suas memórias. “Fomos lá tentar cumprir a missão, negociando com o presidente, uma figura de relevo na cidade, que era veterinário municipal. Os aficionados do Arousa, ao saberem que estavam na cidade emissários do Leixões para adquirirem a licença do idolatrado jogador, cercaram a sede do clube, e isso obrigou-nos a fugir com Cambre na direção de Matosinhos.”
Um forte retrato que Juan Cambre compreende, mesmo com um distanciamento gigante da época, dos 18 anos que tinha, para os 79 atuais. “Fui uma contratação impulsiva e em Villagarcía não me imaginavam a sair naquela altura. Foi um jogo em que saíram bem as coisas. Marcou-me um Narciso, um jogador enorme, um sargento negro, das colónias, mais de 1,90 metros. Com a minha velocidade ultrapassei-o várias vezes. Como ele passou mal comigo, eu ia a gasóleo, ele nem se movia. Sei que o Pedroto ficou maravilhado e meteu a carne toda no assador para que me fossem buscar. Não desistiu até me contratarem”, conta. “Essa transferência valeu, pelo que sei, um milhão de pesetas. O presidente do Arousa declarou 100 mil, porque tinha colocado dinheiro no clube e quis recuperá-lo. Arrecadaram muito dinheiro com um jogo em que fui jogar pelo Leixões a Villagarcía. E ainda veio muito material desportivo”, acrescenta.
Juan Cambre fez duas épocas em Matosinhos, vive esse jorrar de adrenalina em Glasgow poucos dias após ter chegado. José Maria Pedroto delirava com as qualidades. “Foi um fantástico jogador e todos em Portugal sabem o extraordinário que foi. Simpatizou comigo, era muito inteligente, conversador e sociável. Apanhei um técnico jovem, boa pessoa e muito conhecedor. Sei que era uma referência em Portugal, como Otto Glória e Bela Guttman. Percebia-se o carinho pelo Leixões, porque havia jogado lá muito jovem”, recua o antigo extremo galego, marcado por “recordações incríveis” desse Leixões. “Saudades de todos, dos adeptos, dos companheiros, dos diretores. Portugal virou o meu segundo país, levo no coração essa cidade, onde fiz tantas amizades. Era tratado como o menino, cheguei sem barba, era um filho para alguns, que estavam na casa dos 30 anos. Carlos Duarte ou Mário Ventura olhavam assim para mim, com um carinho fenomenal. Recebia muitos conselhos. Eram todos estupendos. Estou a par que muitos deles já morreram, alguns ainda novos. Falar do Leixões dá-me essa tristeza”.
Tropa matou a carreira
Apesar de muito ter desfrutado do ambiente em Matosinhos, do futebol em Portugal, a carreira não foi a mais feliz. “Posso ter cometido um erro ao vir para Portugal. Porque se tivesse ficado na Galiza não teria tido o serviço militar em Ferrol, acabaria contratado por um dos grandes galegos. O serviço militar tramou-me, ainda estava para jogar pelo Racing Ferrol, na II Divisão, mas queriam ficar com a minha carta e licença, comprar a minha liberdade. Não aceitei essa tramoia”, reflete. “Eles tinham muita força no departamento marítimo e fizeram-me a vida impossível. Tive de pedir ao meu pai para mover influências. Acabei por deixar de jogar, terminei os estudos, que era a vontade em casa. O meu pai ficou descontente por ter ido para o Leixões, não ter saído para um grande da Galiza. Era uma altura em que obedecia ou ia para fora de casa”, junta Cambre, que trabalhou como bancário, entre Corunha, Vigo e Villagarcía.