As histórias curiosas sobre a devoção do Papa ao futebol, acesa na infância pelo San Lorenzo.
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Corria o ano de 2013 quando Alfio Basile, treinador argentino, reencontrou Fernando Miele, presidente do San Lorenzo quando por lá passou, entre 1998 e 1999. "Já viste quem é o novo Papa?", perguntou o antigo dirigente, que também ofereceu a resposta: "É o Bergoglio, o padre que tu expulsaste do balneário do San Lorenzo."
Esta é apenas uma entre imensas histórias do Papa Francisco relacionadas com o futebol, numa viagem que agora se faz a propósito do arranque das Jornadas Mundiais da Juventude.
Estando o leitor entusiasmado com o evento ou já completamente farto, vamos desvendar o lado futeboleiro do chefe da igreja católica, que há mais de 20 anos seguia os jogadores do San Lorenzo para todo o lado para os abençoar, com orações ou até mesmo conselhos para os desafios. "Se não estávamos a ganhar jogos, por que é que ele ia continuar a rezar com o plantel?", atirou Basile como justificação para excomungar o padre.
Nascido numa família de imigrantes italianos e no bairro vizinho do San Lorenzo, Jorgito começou a ir desde cedo ao mítico Gasómetro, à boleia da paixão do pai pelo emblema de Buenos Aires. Num golpe fatal do destino, foi nas bancadas que o progenitor faleceu, vítima de ataque cardíaco, em 1961. Por essa altura, já Bergoglio estava no seminário com as memórias da infância e juventude pintadas a azul e vermelho do "ciclón". Nas ruas, como qualquer criança, divertia-se com uma bola. "Eu era um tronco, chamavam-me "pata dura" e mandavam-me para a baliza. Aí, safava-me mais ou menos bem", revelou Jorge Bergoglio, sócio número 88 235 dos "corvos" e ainda capaz de citar um a um o onze dos campeões argentinos de 1946, a sua primeira grande celebração desportiva. "Muitos definem o futebol como o desporto mais bonito do mundo. Eu também acredito nisso."
Se o ditado já manda todos os visitantes de Roma irem ver o Papa, mais cheia fica a agenda com esta paixão pelo futebol, porque se multiplicaram as receções a futebolistas, treinadores e comitivas, quase todos com camisolas personalizadas ou outro tipo de presentes, no que resulta num museu particular bastante difícil de igualar. Também há quem procure uma bênção para jogos importantes e é assim que voltamos ao San Lorenzo. Quando Bergoglio foi eleito Papa, em 2013, os rivais gozaram: o San Lorenzo tem mais papas do que copas (Libertadores)! Nem de propósito, logo no ano seguinte o "ciclón" sagrou-se finalmente campeão sul-americano, depois de quase ter descido de divisão na época anterior. "O San Lorenzo faz parte da minha identidade cultural", assumiu o Papa Francisco, que fez uma promessa peculiar em 1990: não voltar a ver televisão. Portanto, não viu o San Lorenzo ganhar a Libertadores nem a Argentina sagrar-se campeã do mundo no Catar. "Há um guarda suíço que todas as semanas me deixa os resultados e a tabela classificativa", revelou o Sumo Pontífice, que durante o Argentina-França da final do Mundial estava reunido com seis pilotos da Alitalia. Desse jogo, no entanto, além da natural satisfação, saiu uma reflexão socio-cultural. "Mostra um pouco a nossa idiossincrasia. Vejam os jogos contra os Países Baixos [meia-final] e a final. Começaram a ganhar 2-0 ou 3-1 e os argentinos ficam todos felizes. Vamos para o segundo tempo e acabam a ganhar por um penálti, por casualidade. Nós, os argentinos temos isto. Começamos com entusiasmo mas temos uma cultura, eu pelo menos tenho, de deixar as coisas a meio." O texto acaba aqui, mas há mais para ler na outra metade da página sobre o "hincha" Jorge Bergoglio.
Sacrilégio entre Messi e Deus
Se há povo que liga facilmente o futebol à religião é o argentino, rendido à "Mão de Deus" de Maradona contra a Inglaterra e definitivamente convicto de que Lionel Messi é uma entidade divina depois da vitória no Mundial. O Papa foi diretamente questionado se era correto afirmar tal coisa e é mais ou menos por aí que traça a linha. "Em teoria, é um sacrilégio. Não se pode dizer isso. Eu não acredito, tu acreditas? As pessoas dizem Deus, adoro-te...mas adorar é apenas a Deus. São expressões do povo. Este é um Deus com a bola no relvado. Claro que sim, dá gosto, mas não é Deus", argumentou uma vez. Sobre outra lenda do futebol argentino, Diego Maradona, Bergoglio via "um poeta", mas também "um homem muito frágil". Em 1986, ainda não tinha prometido não ver mais televisão, mas mesmo assim só soube que a Argentina se sagrara campeã do mundo no dia seguinte, na Alemanha, "quando uma rapariga japonesa escreveu "Viva Argentina" no quadro negro durante uma lição alemã".
De resto, o Papa Francisco gosta de utilizar o futebol como metáfora para a vida. "Ajudem as crianças a compreender que o banco não é uma humilhação, mas uma oportunidade para crescer e uma chance para os outros. Que sempre tenham o gosto de dar o melhor de si, porque para lá do jogo há uma vida que os espera", frisou Jorge Bergoglio, que vê na modalidade um meio para "pessoas reais partilharem amizade e desafiarem-se mutuamente".