Um testemunho de Lacota, agora com 101 anos, que nos vence pela surpresa. De um sobrevivente do título nacional do Belenenses, que defrontou Feliciano, Quaresma e companhia na caminhada para o título na época 1945/46
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Os registos dizem com alguma segurança que Manuel Gonçalves, vulgo Lacota, é o sobrevivente mais destacado e mais distante do que foi jogar a nossa I Divisão em tempos idos. Não há aparente rival para os 101 anos do guarda-redes, figura icónica do Olhanense, que se estreou no principal campeonato português na época 1945/46, defrontando o Belenenses, que até se sagraria campeão nacional com um elenco de luxo, que se imortalizou como raro “outsider” nas contas dos grandes.
Seria necessário alguém puxar dos seus galões de veterano de guerra da primeira metade dos anos 40… Vamos apontar esta proeza ao algarvio Lacota, já que Mário Costa, com a sua saga de descobrir os jogadores mais antigos do futebol nacional e percorrer o país com cromos na mão para dar um mimo de encantar ao próprio, apoiado pela generosidade de um olhar, promovendo a mais doce nostalgia, deparou-se com este cativante indicador. E com a ajuda de Mário Costa, que perpetua os seus achados numa conta de Instagram, oferecendo um breve resumo do histórico do atleta na I Divisão, também foi possível a O JOGO falar com Lacota, recentemente felicitado pelo Olhanense pelos seus 101 anos, após ter recebido visita de Manuel Cajuda no seu incrível centenário. Não deu para entabular a conversa com muita aceleração, a profundidade da memória já está perto de um século de intervalo, mas o antigo guarda-redes não declinou aventurar-se numas falas, que muito nos honraram, indo ao encontro dessa data de setembro de 1945, em que entrou no onze do Olhanense, nada podendo fazer contra o Belenenses, de Feliciano e Artur Quaresma, que cilindrou a baliza algarvia por seis golos sem resposta. Só jogaria mais uma vez na I Divisão, em 1949/50, perante a Académica, enfrentando quase sempre a condição de suplente por imposição da história de Abraão.
“Era um Belenenses muito forte, das Torres de Belém, do Feliciano, do Vasco e do Capela, o seu grande guarda-redes. Eu jogava pouco, só quando o Abraão se aleijava. Era muito bom, um dos melhores do Olhanense, com o Fernando Cabrita e o Salvador. Também lembro o João da Palma e o meu compadre, o João Rodrigues. O Cabrita teve mais sorte na carreira, o Salvador era muito habilidoso”, recorda Lacota, curvando-se a dois jogadores que foram bandeira do conjunto de Olhão nos anos 40. Em 1945/46, Cabrita, que seria noutro tempo técnico do Benfica e da Seleção no Europeu de 1984, acabou com 15 golos e Salvador com 18.
Nas memórias de Lacota irrompem os dérbis algarvios, que, então, colocavam em lados opostos da barricada o Olhanense e o Lusitano de Vila Real de Santo António. “Fizeram uma boa equipa durante vários anos e tiveram o Pedroto. Quando as equipas do Algarve se defrontavam, havia muita vida nas terras e crescia a rivalidade”, conta, expondo as agruras da época, as exigências paralelas que faziam do futebol ocupação secundária. “Em Olhão era tudo ligado à pesca, ao mar, grande parte eram pescadores e os jogadores também faziam parte dessa vida. Havia muito movimento, muitas fábricas. Eu trabalhava numa fábrica de conservas”, desvenda, revelando o que auferia com o futebol. “Eram 100 ou 200 escudos”, atira Manuel Gonçalves Fernandes, de alcunha Lacota, que regressa ao seu Olhanense após passar uma época no Sporting, então com 21 anos, vendo o nascimento dos 5 Violinos. A experiência foi curta, determinada pelo fim da recruta. “Estive no Sporting porque fui a Lisboa fazer a tropa, mas nunca joguei, os outros eram melhores. Tinham o João Azevedo, um dos melhores de sempre em Portugal, para mim melhor que Damas e Bento”, recua Lacota, que também estava por detrás de Dores e Tormenta.
“A nossa medalha”
Manuel Cajuda, algarvio de pergaminhos, treinador de eleição e agora rosto que tenta recuperar a honra e reconduzir o histórico emblema a patamares dignos e nacionais, curva-se a Lacota e aos tempos de um gigante Olhanense que até perdeu uma final da Taça para o Sporting. Era uma equipa treinada por Cassiano, a glória olhanense que esteve no clube como treinador e jogador, avançado na época da conquista do Campeonato de Portugal, em 1923/24.
Manuel Cajuda perpetua com paixão a memória de Lacota, um orgulho de Olhão, com história ímpar para o clube e para a cidade. Viagem a um café onde uma moeda fazia girar Roberto Carlos.
“Lacota é a nossa história, que persiste com o seu encanto e nos pertence. Ele diz-nos o que foi o Olhanense, sendo praticamente da mesma geração que colou uma máxima na cidade anos a fio, de que na cidade de Olhão mora o campeão de Portugal. Esteve ligado às maiores páginas deste grande clube, carrega essa medalha. A sua vida de 101 anos confunde-se com a do Olhanense, de 113”, salienta o presidente do agora Olhanense 1912.
“As vivências com ele são outro tesouro que temos. É alguém que conheço da minha infância, sou amigo da família. Lembro o primeiro estabelecimento que teve, um café, que chamávamos a venda do Lacota. Metia-se uma moeda e punha-se um disco a tocar do Julio Iglesias ou Roberto Carlos. Mais tarde funda o Bote, o restaurante que se celebrizou em Olhão desde 1979. Ele brilhava no peixe assado, sugeria e dominava a grelha”, conta, recortando fascinantes pedaços da história. Cajuda esteve presente no centenário de Lacota, numa visita à casa do antigo guarda-redes, com direito a bola, 100 velas, que aprofundou recordações e gravou a intimidade de sempre.
“Um senhor querido de todos, é um nome cantado em Olhão, tenho pena de não podermos devolver-lhe o que ele merece, o lugar do Olhanense é difícil. Dá-nos mais visibilidade e orgulho! Guardo a visita que lhe fiz no centenário, tratou-me por Manuel, poucos me tratam assim, só Olhão de muito tempo atrás. É maravilhoso ouvi-lo, ainda tem histórias na ponta da língua e memória impecável.”
Lacota e uma equipa com fibra de elite
Nome que atravessa a história de Olhão e do Olhanense, Mário Proença, diretor do jornal Olhanense, de 81 anos, propriedade do clube há 62 anos, também não se furtou a contextualizar a importância do nome Lacota. O histórico jornalista algarvio disseca a época, que já não pode ser contada ou testemunhada por muitos, vertendo na conversa os argumentos de uma equipa que orgulhava uma cidade.
Mário Proença fica quase 20 anos atrás, mas é um auxílio precioso para penetrar nesse Olhanense
“Era um Olhanense com fibra de I Divisão, onde se manteria durante dez temporadas consecutivas. Nas suas fileiras estavam nomes de grande relevo no panorama futebolístico algarvio e nacional, destacando-se o guarda-redes Abraão, titular indiscutível, que raramente dava lugar à concorrência e a Lacota. Outros atletas de mérito eram o Grazina, um médio ou central de grande robustez e presença em campo, Cabrita, que tinha mais renome, bem como Salvador e Moreira, referências incontornáveis desse período”, identifica Mário Proença, descrevendo o ambiente reinante em torno da equipa. “O impacto do clube junto da população algarvia era enorme, atraindo ao Estádio Padinha multidões consideráveis para a época. Havia amor e bairrismo.”