REPORTAGEM - O Estádio Algarve recebe este domingo a Supertaça. Será uma rara enchente de um dos mais polémicos palcos construídos com dinheiro público para o Euro'2004, a par dos de Leiria e de Aveiro. Há 15 anos que têm o futuro adiado por planos que tardam em sair do papel mas que os autarcas não têm pejo em repetir, enquanto tentam enchê-los com imaginação.
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Euro"2004: a ideia de José Sócrates, em era de socialistas no poder, foi muito criticada pelo PSD, mas quando chegou a fase final e tudo correu na perfeição (pelo menos, até à final com a Grécia), era ver os social-democratas nas tribunas a aplaudir o sucesso.
Varridos sob o tapete da organização exemplar que ficou como modelo para a UEFA estavam milhões de polémica, enterrados em obras de futuro duvidoso. Três estádios levantavam especial preocupação: Algarve, onde este domingo se jogará a Supertaça, Leiria e Aveiro.
10: autarquias de Braga, Guimarães, Aveiro, Coimbra, Leiria e a associação dos municípios de Faro e Loulé construíram estádios para o Europeu. Benfica, FC Porto, Sporting (os de maior dimensão) e Boavista completaram o mapa
No caso do primeiro, a preocupação era óbvia: a região não tinha sequer equipas na I Liga; quando passou a ter, Olhanense e Portimonense preferiram jogar em casa própria.
Faro/Loulé: tem um custo mensal de 18 600 euros. É a casa da seleção de Gibraltar, do Mundialito feminino, palco de jogos internacionais, estágios e até automobilismo já acolheu, tudo para rentabilizar o espaço
Quanto a Leiria, então no campeonato principal, era um caso sério de fracas assistências, ainda antes das obras, que contemplaram uma bancada amovível. Depois do Euro"2004, a lotação baixou, mas até hoje continua a sobrar espaço vazio e o destino a dar ao recinto até já virou anedota: o topo norte há de ser usado para qualquer coisa, mas, passados 15 anos, ainda não se sabe o quê - no ano passado foi lançado um concurso de ideias e a intenção de lá ter um centro empresarial de tecnologia, tudo no papel, sublinhado com o custo de cem milhões de euros para a remodelação. O que se sabe, depois de insistir com a autarquia, é que o recinto custa "11 900 euros por dia em empréstimos". Inicialmente, a resposta às perguntas de O JOGO fora mais vaga: "Os encargos com os custos da dívida têm vindo a baixar ao longo dos anos", mas os da "manutenção da infraestrutura têm vindo a aumentar." Atletas de várias modalidades usam o recinto, diariamente, mas, quanto a futebol, quem ali joga é o União de Leiria, atualmente no Campeonato de Portugal.
Leiria: o U. Leiria SAD paga para jogar lá. Tem 23 164 lugares de lotação. Em 2018, o estádio recebeu "245 eventos". Conferências, espetáculos e treinos de várias modalidades
Em Aveiro, o cenário não é mais animador. Arrancar a casa do Beira-Mar, na cidade, para um descampado nos arredores, já se adivinhava fatal. O Mário Duarte, pequenino, aconchegante ou sufocante, consoante se adote a perspetiva da equipa da casa ou a dos adversários com quem então discutia a permanência no escalão principal, mudou-se para um enorme edifício multicor, num descampado perto de uma zona comercial para onde, década e meia depois, ainda se repete a promessa de um grande parque desportivo. "Até hoje não aconteceu, mas trabalhamos para acontecer", garante Ribau Esteves a propósito do plano inicial, que incluía, entre outras estruturas, um campo de golfe. No presente, as máquinas estão no terreno para erguer a cidade desportiva para a Associação de Futebol de Aveiro, que para ali vai mudar a sede; pensa-se numa piscina municipal e sobretudo em liquidar a dívida milionária que ficou, tão real como os quase 30 mil lugares de um estádio que, mesmo quando ali jogou o Beira-Mar, antes de cair para os distritais (tal como o União de Leiria), parecia sempre vazio. "As avaliações ao passado não servem para nada, servem para tirar lições. Fizemos, está feito", atira o autarca Ribau Esteves, habituado a conviver com a ideia de que "amortizar ou ter retorno num investimento de mais de 65 milhões de euros vai demorar muitas décadas". O custo inicial do projeto não chegava aos 20 milhões de euros, mas derrapou, tal como em Leiria.
Aveiro: orçado em 31 M€, custou 64 M€. Palco de seleções e jogos de escalões secundários. O Beira-Mar volta para lá esta época: o Mário Duarte original será demolido. Nas imediações, já se trabalha na construção da Cidade Desportiva da AF Aveiro
Houve derrapagens brutais, mas nada que em 2004 parecesse preocupar os governantes, fiéis aos interesses dos bancos e das grandes construtoras para os quais foram canalizados milhões de euros do Estado. Em rigor, 109 074 880 euros. Foi esse o valor total da comparticipação financeira para as obras dos dez estádios, seis a cargo de entidades públicas - autarquias de Braga, Guimarães, Coimbra, Aveiro, Leiria e Associação de Municípios Loulé/Faro - e os restantes de Benfica, Sporting, FC Porto e Boavista. Os clubes receberam a maior fatia desse bolo, 61 por cento do montante. A opção foi criticada no relatório final da auditoria do Tribunal de Contas ao Euro"2004, onde se questiona se "o elevado montante" desse apoio "não poderia ter tido utilização alternativa, porventura mais eficiente, noutras áreas de relevante interesse e carência públicos". Contrapõe-se, contudo, que "os benefícios destes projetos não se esgotaram" com o torneio, "tendo beneficiado as zonas onde se instalaram, em termos das acessibilidades e da própria requalificação urbana".
Para as autarquias sobraram elefantes brancos e um endividamento brutal, para o qual "não foram definidos quaisquer limites", ao contrário do que sucedeu com a administração central, notou o Tribunal de Contas, em 2005. "Os empréstimos bancários (...) no montante global de 300,7 milhões de euros, financiaram quase 67,58 por cento do custo global dos empreendimentos (estádios, estacionamentos, acessibilidades e outras infraestruturas)", relatou o auditor, que apontou ainda a "exiguidade de recursos" dos promotores públicos e as "facilidades oferecidas pela banca" entre as "condições que potenciaram o endividamento".
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Se 15 anos não chegaram para resolver os problemas, ajudaram, porém, a diluir a ideia de estarmos perante elefantes brancos (oferecidos por reis, na Ásia, representavam uma honra de manutenção dispendiosa e da qual os donos não se podiam livrar). Para Reinaldo Teixeira, presidente da Associação de Futebol do Algarve, o palco da Supertaça não é tal coisa. "É utilizado pelo Louletano de duas em duas semanas, outras equipas da região também lá atuam, ainda que de forma mais esporádica, e, para além desta Supertaça e dos jogos da Seleção Nacional, o Estádio Algarve é palco de muitos outros eventos", defende, e atira: "O que seria da principal região turística do país se não tivesse um estádio desta dimensão?" Resposta possível: os municípios de Faro e Loulé poupariam €18 600 todos os meses. Lá para 2024, contam ter a obra paga. Entretanto projetam remodelações; aqui, um centro de estágios internacional com três campos de futebol. Como os demais, ainda não saiu do papel, mas há uma esperança renovada, agora que Espanha e Portugal trabalham numa candidatura ibérica ao Mundial"2030, embora o primeiro-ministro António Costa não tenha mostrado entusiasmo com a ideia, a que o presidente da UEFA também torce o nariz.
Pedreira: uma obra de arte para alienar
Todos os meses, o Braga paga 550 euros à câmara municipal pela utilização da Pedreira, uma obra de arte arquitetónica com assinatura de Souto Moura construída para o Euro"2004 e cujo preço final ainda é cedo para determinar. Isso só se saberá quando as contas forem encerradas: inicialmente orçada em 73,4 milhões de euros, vai nos 157 milhões e pode não ficar por aí, devido a ações em tribunal com recursos pendentes. Uma delas foi interposta pelo arquiteto, que quer ver o valor dos honorários acompanhar o do montante da obra (o tribunal deu-lhe razão, condenou a autarquia a pagar 2,5 milhões de euros, mais juros, e o processo aguarda recurso). Entretanto, o município que o social-democrata Ricardo Rio herdou do socialista Mesquita Machado já só quer ver-se livre do recinto. "Se surgir um comprador, o estádio é vendido no minuto seguinte", afirmou recentemente, citado na Imprensa. A decisão será tomada depois das eleições, em referendo.
"Se surgir um comprador, é vendido no minuto seguinte" - Ricardo Rio, presidente da CM Braga
Perante essa eventualidade, António Salvador, presidente do Braga, avançou com a ideia de construir "um novo estádio", mais pequeno, com "cerca de 20 mil lugares", e acenou a Ricardo Rio com o 1.º de Maio. Da autarquia não houve objeção, apenas a ressalva de que o recinto onde o clube jogava antes do Euro"2004 é "património nacional", o que condicionará qualquer intervenção.
Boavista: um salto para o abismo
O que fazia o Boavista entre os três grandes no início do século XXI? Logo a abrir fez-se campeão, andou pela Liga dos Campeões e viu no Euro"2004 uma oportunidade de fixar esse crescimento também nas paredes do Bessa. Foi assim que um projeto de um novo estádio, em curso, cresceu para uma lotação perto dos 30 mil lugares, à medida das exigências da UEFA, mas para lá da capacidade humana e económica do clube. Antes do colapso, os adeptos puderam encantar-se com o nascimento de uma nova estrutura: a equipa de Jaime Pacheco nunca deixou de jogar ali e, no final, o Bessa renasceu ainda mais bonito, sempre à inglesa. Pagá-lo e, depois da descida aos escalões inferiores, enchê-lo, esses são desafios que permanecem, bem como as queixas de que os outros três clubes que assumiram a construção de estádios para o Euro"2004 tiveram mais dinheiro do Estado. O tempo mostrou que, dos dez recintos, apenas os de Benfica, FC Porto e Sporting e Vitória de Guimarães têm adeptos à dimensão das estruturas. Nos demais, sobram cadeiras e dívidas.