"Na Premier League, as equipas com menos lesões foram as que mais jogos tiveram"
Fisiologista do Departamento de Performance do Braga nas últimas seis épocas, Rui Lemos trabalha aos 39 anos no Lyon
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Fisiologista do Departamento de Performance do Braga nas últimas seis épocas, que deixou já na etapa final de 2023/24, Rui Lemos trabalha aos 39 anos no Lyon, clube que o convenceu com uma valorização mais ativa do seu trabalho, relativamente ao que sentia em Portugal, optando por deixar o clube da cidade e do coração, defraudado por não ver o papel mais reconhecido.
As lesões que tanto abalam o Braga - para o jogo com o Gil Vicente estavam impedidos Bambu, Niakaté, Moutinho, Zalazar e Bruma - neste arranque de temporada suscitaram uma breve conversa com este profissional, até porque o maestro uruguaio volta a parar, em momento sensível, devido a novo problema muscular. Com um esquema gráfico, em que é dividido o número de lesões por 1000 horas de exposição, Rui Lemos orgulha-se de ter ajudado o Braga a situar-se prolongadamente numa fasquia de 1.0, subindo apenas a 1.7, muito abaixo da média europeia de 5.0. No seu esquema, os guerreiros têm agravado a sua estatística nos últimos meses, de 4.3 para 6.3 e, agora, estão em 8.0.
Gostava de entender a fragilidade do Braga com as lesões que se vai vendo esta época. Algum tipo de explicações primárias e outras mais escondidas?
Quando falamos de lesões falamos de algo complexo que depende de vários fatores não lineares, onde muitos deles nos parecem controláveis à primeira vista, mas não o são. No entanto, se não tivermos um conhecimento profundo do corpo humano (não me refiro só à anatomia e fisiologia) e, fundamentalmente, se não tivermos conhecimentos aprofundados sobre o verdadeiro treino específico e até a forma de jogar, torna-se muito difícil discutir sobre a redução de risco de lesão, principalmente quando se fala demasiado em trabalho dito “preventivo”. Isto leva-nos, numa primeira fase, à importância da manutenção de Recursos Humanos válidos e com essa capacidade de raciocínio e experiência. Numa segunda fase, é imperioso ter-se confiança no que se faz e não na necessidade de se mostrar trabalho, apenas porque parece mal dizer que é melhor os jogadores descansarem – às vezes menos é mais.
Olhando à natureza do seu trabalho, fundamentado em Braga durante seis épocas e com pouca exposição a baixas, que aspetos entende que protegiam e acautelavam a equipa dessas contrariedades?
A partir do momento que um jogador entra em campo está exposto a lesões, tenham elas caráter de contacto ou não. Mas quando se entra em campo com um corpo que não está funcional, seja por fadiga acumulada ou por treino concorrente àquele que é feito no campo, entramos numa disputa do Sistema Nervoso Central e Periférico e isso confunde-o, tornando-o mais propenso a problemas. É um pouco como se estivesse a aprender a falar francês, mas, simultaneamente, tendo aulas de alemão. Durante os anos que estive no Braga, o que eu mais protegia era essa funcionalidade de cariz do movimento, tentando não interferir com aquilo que era executado em campo com o equipa técnica.
É um pouco como se estivesse a aprender a falar francês, mas, simultaneamente, tendo aulas de alemão. Durante os anos que estive no Braga, o que eu mais protegia era essa funcionalidade de cariz do movimento, tentando não interferir com aquilo que era executado em campo com o equipa técnica.
Pergunto pela forma de trabalhar coletiva e individualmente que mais previne a propensão do atleta a lesões?
O mais confortável e lógico seria dizer que sigo protocolos de “prevenção” de lesões, mas a verdade é que isso não é verdade. Como podemos verificar facilmente com o aumento do número absolutamente avassalador de lesões musculares e articulares que existem neste momento no futebol e que seguem tais protocolos. Ou seja, se realmente esses protocolos funcionassem, não teríamos um aumento de 100% de lesões nos isquiotibiais nos últimos 20 anos! Poderemos discutir sobre o aumento no número de jogos e da sua intensidade (o que nos leva diretamente a pensar na recuperação e não no adicionar de mais treinos extra), mas também temos de ser racionais e perceber que muita coisa evoluiu. Curiosamente, um estudo recente sobre as lesões na Premier League em 23-24 veio demonstrar que as equipas com menos lesões foram as que mais jogos tiveram, falo do Manchester City e Arsenal, o que faz cair por terra uma dessas problemáticas. Nessa continuidade, não nos podemos esquecer também que hoje em dia temos cinco substituições possíveis, o que faz com que se possa gerir 50% dos jogadores de campo num só jogo, nem esquecer que também a tecnologia (dados GPS, etc); equipamentos (chuteiras, terreno de jogo, etc.); número de profissionais dedicados a esta temática como fisioterapeutas, preparadores, etc.; valores monetários astronómicos que são disponibilizados para isto, sofreram uma evolução sem precedentes. Tudo isto para dizer que alguma coisa está mal quando vemos que houve, só em Inglaterra e só na Premier League, na época passada (jogadores ditos melhor preparados fisicamente), mais de 25 mil dias de abstenção de treinos e jogos por parte de jogadores de futebol. Tal como na sociedade, o futebol entrou num processo de redução da visão do todo, o que se designa por reducionismo e, isso, faz perder a capacidade de saber gerir a complexidade do corpo de um jogador de futebol, que é diferente de um atleta de velocidade, que é diferente de um jogador de andebol, que é diferente do um fisiculturista, por aí fora…
Dentro do seu tempo em Braga, um bem razoável período de seis épocas, as estatísticas provam que os treinadores não viveram qualquer calvário ou tormenta com lesões. De que forma o departamento de performance pode articular melhor com o treinador os riscos de lesões?
Nunca se deixando desarticular o Departamento de Performance com a equipa técnica. O objetivo principal é oferecer à última o maior número de jogadores possível, em melhor estado físico possível, durante o maior tempo possível. E para que isso aconteça, a melhor forma de articulação é haver uma linguagem comum, e essa linguagem é o treino no campo de futebol. A partir daí, pode-se tornar mais fácil ou mais difícil essa articulação. Quando se entra num departamento de performance vindo de uma modalidade coletiva diferente, ou pior, de uma modalidade individual, essa linguagem está desarticulada e que poderá levar a problemas graves nessa gestão. Hoje, temos pessoas com um tablet na mão a ver dados de GPS mas que nem sabem o que aquele exercício trabalha. Pelo contrário, quando um profissional entende o que se faz no treino, percebe cada exercício que o compõe, entende a forma de jogar da equipa e percebe que cada jogo transmite ao corpo do jogador coisas diferentes, até porque este é um sistema aberto que interage com o ambiente, então aí a probabilidade de não se viverem esses calvários é maior!
Do seu trabalho no passado no clube ao presente, algo que constate que está realmente mal por detrás de tantos problemas físicos?
Um dos principais problemas que constato hoje em dia, é a ideia linear de que se trabalhar mais o físico fora do treino, isso levará a um maior sucesso e/ou a um sucesso mais rápido. Isso não é verdade! O trabalho complementar é importante, mas na dose certa. Eu não sou contra o trabalho extra-campo, sou contra o tipo de trabalho que se faz nesse tempo. Então começa-se a descansar durante o treino para se ter energia para aguentar os treinos paralelos ao futebol, isso é incutido por pessoas externas, com a promessa de se ser valorizado ao quilo de massa muscular. Este com a particularidade de interferir negativamente (se não for natural e progressivo no tempo) na capacidade física do jogar. Basta pensarmos na física e na 1ª lei de Newton (lei da inércia), basta pensar no que isso corresponde em termos metabólicos, em termos fasciais e aponevróticos, em termos tendinosos, em termos nervosos, etc. etc. Hoje está-se a perder a visão sistémica, seguindo a analogia da aprendizagem linguística. Não é por escrever todos os dias o abecedário num quadro que vou aprender a falar alemão. Outra das ideias erradas é a desvalorização das diferentes ações e timings do SNC, em que se pensa apenas em exercícios excêntricos (com graus de liberdade inexistentes) como a melhor receita na dita “prevenção” de lesões musculares. O corpo é muito, mas muito mais do que apenas fibras musculares.
Já agora conhecer um pouco do histórico do Rui Lemos e das razões que o levaram a França e ao Lyon e como vai vendo o seu envolvimento no clube?
Bem como entender que tipo de desafios e motivações de trabalho acompanham um elemento das suas funções na mudança de clube e realidade? Fui muito feliz no Braga, mas senti que após tantos anos no clube precisava de abraçar outro projeto, onde pudesse ter mais intervenção no treino. Depois fui me apercebendo de interesses por parte de outros clubes dentro e fora de Portugal, o que me fez ter vontade de experimentar uma das 5 melhores ligas do mundo – Ligue 1. O projeto no Lyon é diferente, faço parte da equipa técnica e onde a figura do Preparador Físico é muito valorizada e onde tenho uma intervenção direta na organização pré, durante e pós treino. Lido de uma forma muito próxima com o Departamento Médico (o que me ajuda por também ser fisioterapeuta), Departamento de Nutrição, Departamento Futebol, etc. A organização, o detalhe, a intensidade de treinos, dos jogos é diferente, o que me faz estar a vivenciar algo complementar e enriquecedor. Aos poucos vou-me adaptando a uma dimensão de um clube da dimensão do Lyon, a uma estrutura diferente, com tradições diferentes, mas mantendo sempre a minha identidade e aquilo com que me fez ser convidado para integrar tal projeto. Os resultados serão algo que virão com o processo.