ENTREVISTA - O JOGO foi ao encontro do treinador português em Troia, onde prepara a segunda metade da época no Légia Varsóvia. Mas até chegar ao emblema polaco passou por etapas complicadas noutros clubes.
Corpo do artigo
Depois de conquistar o primeiro título da carreira, ao comando do Standard Liège, Ricardo Sá Pinto mudou-se para mais um histórico do futebol europeu, o Légia Varsóvia (já treinou o Sporting, o Estrela Vermelha...). Uma aventura motivante pela possibilidade de voltar a treinar um candidato ao título no seu respetivo país. Mas até chegar ao tricampeão polaco passou por clubes sem dinheiro e cuja qualidade do plantel era fraca. Nesta entrevista, Sá Pinto focou-se no presente, não desejando desenvolver temas do futebol nacional e dos clubes onde foi jogador e treinador.
O Légia Varsóvia é o seu 8.º clube, no sexto campeonato diferente. Antes, passou por Sporting, Belenenses, OFI, Atromitos, Estrela Vermelha, Al-Fateh e Standard Liège.
Viveu um verão atribulado. Primeiro foi a saída inesperada do Standard Liège, depois o interesse do Sporting num momento conturbado... Por fim, abraçou o desafio do Légia...
- Por acaso 2018 foi um ano fantástico, com grandes conquistas. O Standard Liège foi um clube que gostei muito de treinar e onde, felizmente, tive resultados muito positivos. Havia um sentimento de tristeza, de desconforto, desconfiança, desmotivação... Um pouco como encontrei aqui neste novo desafio, no Légia. As circunstâncias e o ambiente eram muito parecidos quando cheguei. Acabei por não continuar no Standard, tendo mais um ano de contrato, porque não era claro, nas intenções do clube, que íamos lutar para sermos campeões. E queria, para a minha carreira, liderar um clube que tivesse como objetivo principal a conquista de uma liga, de títulos.
1029075836044017669
A proposta do Légia era concreta, o projeto também. Depois da época que fiz no Standard, é sempre um risco. Com a instabilidade em que apanhei a equipa, era uma incógnita, a equipa estava descrente. Voltámos a obter resultados, a jogar um futebol positivo, a dominar os adversários, e chegámos aos lugares lá de cima. Estou feliz agora no Légia, um clube com a dimensão ao nível dos três grandes em Portugal. Quer apostar também na formação e eu convivo bem com isso. O Légia é tricampeão, mas nunca foi tetracampeão. Uma equipa que ganha bem, de forma sustentada, que tem a melhor equipa, aí não é risco, é só não estragar. É importante manterem a coluna vertebral. Mas quando saem alguns dos melhores, não nos reforçamos e depois os objetivos são os mesmos, aí o risco é grande.
Ao oitavo clube, é desta que pega num projeto e estabiliza com possibilidade de moldar a equipa?
- Fazê-lo num clube com estas metas é o meu objetivo. Mas se puder ir para uma liga mais competitiva... Já acreditei mais em projetos, cada vez vivo mais o dia a dia, não deixando de olhar para o futuro, de planear, de ter visão. É um projeto, mas não posso dizer que vou cumprir os três anos. Vivo mais o presente e um projeto a longo prazo não é obsessão.
Não tem receio de ser considerado um treinador de transição ou recuperação anímica?
- Ficava mais preocupado se fosse um treinador de insucesso, que não sou. Vejo muitos com insucesso e sempre a arranjarem clubes. Em 90% dos clubes por onde passei tive resultados positivos, ou algo positivo que ficou, conquistas pontuais importantes. As coisas têm corrido bem e espero que continue com estes objetivos: a liderar equipas que lutem por títulos, isso motiva muito. Quando saí do Sporting fiz um percurso que me levou a equipas de plano diferente, de campeonatos menos competitivos, no último lugar, sem dinheiro, que não tinham qualidade no plantel e com outros objetivos. Fiz um percurso muito difícil e voltei outra vez aonde quero estar. Tenho treinado alguns gigantes adormecidos, como o Estrela Vermelha, o OFI Creta... Tenho um percurso difícil, com muitos quilómetros, mas marcante.
Sá Pinto soma um título como treinador de uma equipa profissional: a Taça da Bélgica, com o Standard Liège. Antes, no início da carreira, conquistou - a meias com Abel - o título de juniores pelo Sporting.
"Identifico-me com muitas coisas do José Mourinho"
O Sá Pinto treinador tem características do Sá Pinto jogador, mas também de técnicos que o orientaram e de um especial, José Mourinho. "Sigo a minha própria metodologia. Aquilo que bebi de todos os treinadores que tive, o que li, o que vejo, o que oiço, é isso que faz de mim o treinador que sou hoje. Estive em dois estágios com o José Mourinho, no Inter e no Real Madrid, e identifico-me com muitas coisas dele, tal como com outros. Um treinador está sempre a pensar. Não durmo, descanso. Estou sempre à procura de algo novo, de surpreender o adversário. Em jogo é preciso saber como comunicar. Por vezes, é importante estar a ler o jogo e dar um indicador cirúrgico. Mas falar a toda a hora não", diz.
Cafú já estava no clube quando Sá Pinto chegou. Entretanto, o técnico recrutou mais três portugueses: André Martins, Salvador Agra e Luís Rocha.
"Perceberam logo que treinador sou!"
Já contratou três lusos (são agora quatro) e vê o nosso mercado como apetecível, mas não quer desequilíbrios no balneário, embora confie que o grupo saiba que não favorece ninguém pelo seu passaporte.
Quando chegou havia um português no plantel (Cafú), agora há quatro (mais André Martins, Luís Rocha e Salvador Agra). É uma questão de conhecimento do mercado, de relação preço/qualidade?
- Sim. É um mercado-alvo. Tem de ser empréstimo ou livres, que são os parâmetros da vinda de Luís Rocha e Salvador Agra. O Cafú já cá estava e o André foi a contratação que ainda fui a tempo de fazer. Os portugueses têm bons princípios táticos, de treino, metodologia, regras, e a adaptação é mais fácil. Gostava de contratar mais, mas procuro o equilíbrio e não quero retirar o espaço do jovem jogador polaco. Certo é que se as coisas correm bem, tudo se aceita; se não correm bem, tudo se põe em causa. E não gostaria que isso acontecesse.
Podem ver favorecimento?
- Esse risco não existe. A minha equipa percebeu bem desde o início que tipo de treinador eu sou, joga quem acho que tem de jogar, não tenho problemas em pôr a jogar um miúdo de 17 ou 18 anos, como de 34 ou 35. A parte mais difícil de um treinador é gerir os recursos humanos. Comigo não há duas formas de dizer a mesma coisa, há só uma e é frontal. Não há duas formas de estar, há, sim, opções que tenho de tomar. Pelo que senti do balneário e pelo perfil que conheço dos que eu contratei, tiveram grande aceitação.
"Tenho um percurso difícil, com muitos quilómetros, mas marcante. Voltei aonde quero estar: a um grande que lute por títulos."
O mercado português continua a ser muito acessível até para essas ligas periféricas?
- Muito acessível e muito apetecível. O André, com o percurso dele e com 29 anos ainda tem muitos anos de futebol de qualidade e de conquistas pela frente. O Cafú tem 25, o Salvador passou por grandes clubes, veio do Benfica e tem andado emprestado, sempre apresentou regularidade, boa performance e papel relevante em termos ofensivos. O compromisso deles não é comigo, é com a profissão, com o clube. Têm de ser o que sempre foram, não mudarem, pretendo que sejam iguais a eles próprios, que se superem para acrescentar o valor que a equipa precisa para ganhar taça e campeonato. Sinto que ainda têm fome de ganhar e que têm paixão. Há os que não tem espaço em Portugal e nesses mercados acabam por se impor. Financeiramente, em Portugal não se paga bem.
"O FC Porto é o mais regular"
O desconhecimento que tinha do Légia fez com que tivesse de estudar a fundo a sua equipa e a liga, o que lhe retirou tempo e disponibilidade para seguir a liga portuguesa. Do pouco que acompanhou, viu um FC Porto "claramente muito mais regular" do que a concorrência. Gostava de ver o seu "afilhado" Abel, técnico que levou para seu adjunto e que recomendou para o suceder nos juniores leoninos, a conquistar o título: "Tudo é possível. Se me dizem "achas que pode...", digo "acho!""
https://www.instagram.com/p/BtJE_OChtK3/
"Auschwitz? Prefiro sítios positivos"
Os campos de concentração de Auschwitz-Birkenau, cuja libertação ocorreu a 27 de janeiro de 1945, são "atração" polaca, mas Sá Pinto não sabe se os quer ir ver.
Como é viver na Polónia?
- Nesta altura é difícil, podem estar entre seis a 15 graus negativos... É difícil andar na rua ou treinar, mas gosto de viver lá. Sinto-me seguro. É uma cidade com história, com oferta em termos culturais, com vida, com mundo.
Já teve possibilidade de visitar os campos de concentração?
- Não tive. E não sei se quero. Vejo muita gente dizer "vou a Cracóvia e vou lá ver Auschwitz"... E eu digo assim [suspira]... Eu acho que é pesadíssimo para quem acompanhou na escola e viu documentários e filmes sobre o que se passou, sobre essa grande catástrofe que marcou a humanidade. Chegar lá e ver uma câmara de gás, ver aqueles ambientes... não acho bonito, acho, sim, histórico, de respeito. Não preciso de ir a esses sítios para perceber o que se passou ali e que crimes foram lá cometidos. Se calhar algum dia vou ter a oportunidade de ir lá, mas procuro mais ir para sítios positivos. Os grandes episódios ou acontecimentos da história têm a ver sempre com coisas muito negativas. Não posso fugir da história, gosto, leio e vejo, mas se puder escolher nesta altura não é minha obsessão visitar sítios onde se cometeram crimes horrendos. Prefiro ir a sítios que me tragam alegria e positividade, é o que eu preciso para o meu dia a dia.
Já sabe algumas palavras em polaco?
- Por agora só sei aquelas de bom dia, obrigado, "dzień dobry e dziękuję..." Vou investir mais, é importante poder exprimir-me naquilo que é básico. Mas estou focado no meu trabalho e por agora ainda é uma questão secundária. Queremos fazer tanta coisa, mas o excesso de informação tira-nos lucidez e saúde. Às vezes, gostava de desligar e precisava de ter um interruptor.