Lincoln tem a lenda de Gibraltar à porta dos 44 anos. O avançado que nunca saiu do Rochedo tem várias marcas na UEFA
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Tem alcance lendário, convoca quase a mesma fama em Gibraltar do que o rochedo que define o estreito no extremo sul da Península Ibérica. É um homem que não se conforma com o fim. Não teve ensejo de somar minutos contra o Braga, mas virá a Portugal com o propósito de juntar mais um estádio num longo livro de emoções, peripécias e aventuras proporcionadas pelo bichinho do jogo, derrubando estigmas e a falta de tradição. Lee Casciaro é conhecido por um golo que deu uma vitória do Lincoln sobre o Celtic, pelos 27 anos como sénior na mesma equipa, merecendo comparações a Totti, por ser, ainda, o autor do primeiro golo da seleção, pela soma de 60 títulos, recorde mundial num só clube, e por ser, com 43 anos, o jogador mais velho a pisar um relvado em provas da UEFA. Marcas que se misturam e adensam o culto sobre Lee Casciaro, que também é um destacado polícia no território britânico.
O avançado agarra o legado e a identidade forjada nas quatro linhas. “Jogar pelo Lincoln e pela seleção tem sido a minha vida, são camisolas que significam tudo para mim e para a minha comunidade. Temos um futebol amador, é muito especial fazer história para tantas pessoas que nos conhecem pessoalmente. Cada golo e cada vitória partilho com os habitantes de Gibraltar”, assinala, descrevendo as raízes futebolísticas. “O Lincoln Red Imps é um assunto de família. Os meus irmãos também jogaram no clube e o futebol está enraizado entre nós. Temos em Gibraltar o nosso lar, é onde crescemos e construímos as nossas vidas. Essa conexão está em todos os jogos”, avalia Lee Casciaro, orgulhoso do caminho já percorrido tão perto dos 44 anos.
Em outubro de 2024 defrontou o Liechenstein num jogo oficial, deixando o recorde de jogador mais velho mais longe de Cristiano Ronaldo, por exemplo. “Estabelecer recordes é gratificante. Mostra que a persistência importa. O reconhecimento da UEFA é especial. O futebol proporcionou-me experiências e contactos que nunca imaginei, desde jogar contra equipas famosas, até receber mensagens de jogadores e adeptos de todo o mundo”, recua, segurando os nomes, mas reiterando o impacto. “Deles ouvi muito sobre o respeito pela disciplina e pela perseverança. De saberes ser firme mesmo quando as probabilidades não estão do teu lado. E a busca desse reconhecimento nada se relaciona com ego. É apenas ter consciência que aquilo que possas fazer vai-se repercutir em outros pela noção dos sacrifícios”, explana Casciaro, desbravando a luz que o iluminou cedo e o prazer que orientou.“Desde que sou criança, o futebol faz parte das minhas escolhas. Brincava na rua com uma bola e passei a jogar diante de milhares de adeptos. Sempre olhei para ídolos que combinavam talento e dedicação. Ainda pensei em jogar fora de Gibraltar, em Espanha ou Reino Unido, mas a família, o trabalho e uma certa lealdade mantiveram-me cá. Ganhei oportunidade de jogar as provas europeias e foi uma ótima experiência sem ter de sair de casa. Nunca, num milhão de anos, poderia imaginar algo assim”, relata o jogador do Lincoln, abstendo-se de eleger o jogo da vida.
“Não tenho o tal perfeito! Acho que teria adorado enfrentar os melhores jogadores da Europa quando tinha os meus 20 anos, apenas para me medir contra eles. Sempre me foquei em aprender, hoje é fácil colecionar informação, mas quando era jovem era uma sorte ver um jogo por semana”, sustenta Casciaro, mais de 700 jogos pelo Lincoln entre 1998 e 2025, 39 partidas na UEFA e 66 encontros na seleção. Curva-se ao desenvolvimento do futebol em Gibraltar. “O futebol mudou muito aqui desde que aderimos à UEFA, em 2013. Há uma influência espanhola, mas a liga está a crescer com jogadores de variadas origens. O nível aumentou, há treinos mais estruturados e uma melhor consciência tática. Isso é representativo do que o Lincoln conquistou em poucos anos”.
Aponta CR7 ao recorde
Com Ronaldo faminto por golos e marcas, talvez até a sua, o gibraltino rende-se ao astro português. “Provou ser um dos maiores de todos os tempos. A sua longevidade, disciplina e preparação são facetas extraordinárias. Pouquíssimos na história conseguiram manter este nível. Os recordes existem para serem batidos, se alguém tem mentalidade e fome de ir por eles, é ele. Não me foco nas estatísticas do Cristiano, apenas na sua mentalidade. Venceu tudo e comporta-se como alguém que tem algo a provar e isso é raro! Isso impulsiona-o a seguir ao mais alto nível. Mesmo que não bata todos os recordes, está aí à vista o exemplo de compromisso e paixão”, revela Casciaro.
Vida na Marinha há 22 anos
A carreira de jogador foi levada pelo sonho de criança, a de polícia como o necessário escape profissional, há mais de duas décadas, quando a prática do futebol era praticamente residual em Gibraltar. “Acho que é uma combinação única! A maioria das pessoas em Gibraltar conhecem-me pelas duas funções, e é algo de que me orgulho. Tenho o meu dia típico de cumprir as minhas obrigações na secção de Marinha, para o Ministério da Defesa, e depois treino ou jogo à noite. É desafiador, mas com disciplina e trabalho tudo se complementa bem”, atira Lee Casciaro, sorrindo com a natureza do seu trabalho. “É um emprego estável, trabalho por turnos há 22 anos. Sou diferente da polícia local, sou mais especializado, trabalho em recursos militares por mar e terra, e estou mais afastado do cidadão comum”, explica, descartando um papel mais vigilante quando passa ao terreno de jogo. “No campo acho que nunca conseguiria impor essa autoridade da farda. Sou eu que mais depressa corro e grito com toda a gente! Se existissem multas, seria recordista no balneário. Faz tudo parte da nossa paixão, dás tudo pela equipa e isso significa levantar a voz”, observa o avançado do Lincoln, colega do português Bernardo Lopes, que tem usado a braçadeira de capitão com Casciaro no banco, como se viu no recente jogo no Algarve com o Braga.
“Braga taticamente muito afinado”
Depois do 0-4 na primeira mão, o Lincoln trará espírito de aprendizagem para o jogo em Braga, defrontando um adversário já com condições amplamente superiores. “O Braga mostrou-nos que é uma equipa poderosa, taticamente muito afinada e tecnicamente muito dotada. Temos de entender este jogo, ir lá jogar com coragem, mas também com disciplina. Não nos podemos deixar levar pela atmosfera ou pela pressão. É preciso seguir à risca o plano e haver confiança entre todos na equipa. Essa energia deve canalizar o nosso foco”, afirma Lee Casciaro, que pode inscrever a marca de ação em Braga com 43 anos e 11 meses. “O futebol é mais sobre resiliência e crença do que habilidade. É mais um jogo único para melhorarmos e aproveitarmos as nossas hipóteses”.