<strong>DOSSIÊ </strong>- Oportunidade e ameaça. Subir degraus na competição e ganhar fôlego financeiro é uma oportunidade que alguns conseguem agarrar. Outros não escapam ao risco de ficar mergulhado em dívidas, desamparados e com o futuro nas mãos de terceiros. O drama do Aves, que há dois anos vivia a glória no Jamor, é só mais um entre tantos nos últimos anos
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O autocarro do clube levado por um reboque na execução de uma penhora deve ser uma das manchas mais embaraçosas, mas o drama do Aves é só mais um entre tantos nos últimos anos que se sucederam à venda de uma Sociedade Anónima Desportiva (SAD). Tudo parece fazer sentido ao início.
"Lei com muitas obrigações, mas que não sanciona o seu incumprimento, nem prevê a possibilidade do clube recuperar a sociedade que fundou"
O investidor projeta estabilidade financeira e metas mais ambiciosas; e o clube entrega-lhe o destino do futebol profissional, porque, claro, manda quem injeta o capital. Há quem tenha transformado uma oportunidade numa força, mas as histórias desastrosas multiplicam-se. As regras (ou a falta delas) associadas à ambição de catapultar os clubes para outros patamares parecem um trampolim para o abismo, com escassas consequências para quem promete sonhos e oferece pesadelos.
Comecemos pela base, o regime jurídico das sociedades desportivas. "É uma lei com muitas obrigações, mas que não sanciona o seu incumprimento, nem prevê a possibilidade do clube recuperar a sociedade que fundou", explica a O JOGO Fernando Veiga Gomes, advogado especialista em Direito do Desporto e que há muito defende uma reformulação nesta matéria. Não obstante, o problema começa antes de o acordo estar no papel, na ausência de escrutínio. Veiga Gomes sugere assim "testes à capacidade financeira dos investidores e à probidade e capacidade dos membros das SAD", além da "revelação pública dos detentores até ao último beneficiário efetivo".
Uma vez que estes mecanismos não estão totalmente fixados, o caminho para os mal-intencionados fica mais simples, e especialmente fácil no Campeonato de Portugal, competição na qual nem sequer é obrigatório constituir uma SAD ou SDUQ.
O advogado Veiga Gomes sugere "testes à capacidade financeira dos investidores e à probidade e capacidade dos membros das SAD"
Joaquim Evangelista, presidente do Sindicato dos Jogadores, não tem tido mãos a medir. "Esta competição está exposta a imensos riscos, dirigentes que são verdadeiros "testas de ferro", alguns deles agentes, que usam os clubes como "barrigas de aluguer" para dar minutos de competição na Europa a jogadores e prometem investimentos desregulados, sem prestar quaisquer garantias. Quase sempre corre mal", lamenta, em declarações a O JOGO. A ameaça agiganta-se com os vínculos precários. "Na última época, 80% dos jogadores estavam registados como amadores, embora a maioria viva do futebol, sem um contrato que os proteja", assinala Evangelista, frustrado com a "subversão total do sistema". "Quem não tem um clube para colocar jogadores, com o capital inicial, compra um clube para o fazer."
A lei tem falhas, o escrutínio é limitado e os clubes agarram-se aos sonhos: multiplicam-se as SAD que acabam muito pior para quem abriu a porta do que para quem entrou
E o que acontece em caso de desastre? A julgar pelo histórico, os investidores ou partem para outra, ou são, no máximo, responsabilizados por "insolvência culposa". Já para o clube, a queda é inevitável, mas há muitas questões sem resposta concreta na lei, assinala Fernando Veiga Gomes, como o que acontece se a SAD não respeitar os direitos do administrador do clube, ou se o clube vender a totalidade das suas ações, como acabou de fazer o Belenenses.
FPF aperta o cerco e um labirinto chinês no terceiro escalão
Ainda no que toca à lei que rege as SAD, Fernando Veiga Gomes destaca outro aspeto a alterar: "Um investidor pode ter 90% de uma SAD e 10% de todas as demais. Ou pode deter 49,9% de todas as SAD." Contudo, pelo regulamento disciplinar na Federação Portuguesa de Futebol, a participação cruzada não é permitida em formações do mesmo escalão. Além disso, esta época, criou a "Plataforma da Transparência", na qual cada é obrigatório revelar quem faz o quê em cada sociedade. Há um documento público, mas que, em vários casos, tem apenas "pessoa singular" em referência ao acionista maioritário.
É neste contexto que chegamos a uma encruzilhada no Campeonato de Portugal. Até ao passado mês de junho, o empresário chinês Qi Chen liderava a SAD do Pinhalnovense, enquanto a esposa, Mia Chunyan, tornou-se presidente da SAD do Olímpico do Montijo em janeiro de 2019. Já esta temporada, a FPF pediu esclarecimentos aos clubes, dias antes de estes se defrontarem, em fevereiro, e as dúvidas ganharam contornos reforçados quando, pouco depois, os dois melhores marcadores do Pinhalnovense, Diego Zaporo e Nico, seguiram para o Olímpico do Montijo. Também este clube atravessou problemas financeiros esta época, refira-se.
Joaquim Evangelista: "Esta competição está exposta a imensos riscos, dirigentes que são verdadeiros testas de ferro"
Finalmente, para a temporada que se avizinha, entra em cena o promovido Oriental Dragon (AF Setúbal), presidido por Qi Chen. Em junho, a SAD do Pinhalnovense passou a ser liderada por Peng Yonghong, de quem praticamente nada se desvenda na internet, e com um dos vogais a ser Liu Zhaoxu, presidente da SAD do Torreense entre 2015 e 2019, período no qual a WsportsSeven teve a participação maioritária em nome de Yunhua Chen, filha de Qi, o dono da empresa... Esta semana, ao jornal Record, o presidente do Olímpico do Montijo, João Monteiro disse que Mia Chunyan já terá vendido a sua participação. Tem a palavra a FPF que está a analisar a situação.
Famalicão e Vizela mostram que é possível ter sucesso
Parece difícil, mas há clubes que deixaram o futuro nas mãos de investidores e saíram a ganhar. O Famalicão é o caso mais mediático, com a ligação à Quantum Pacific, do bilionário israelita Idan Ofer, iniciada em 2018. Mas podemos falar também do Vizela, que em 2016 firmou um acordo de dez anos com a Seca Corporate, do chinês-canadiano Edmund Chu, e vai regressar na próxima temporada à II Liga. "O investidor vestiu a camisola do Vizela e olha para a SAD como um órgão do clube. Estamos sempre a pensar num objetivo comum", explica a O JOGO Eduardo Guimarães, presidente do Vizela (clube).
"É como um casamento. O investidor vestiu a camisola do Vizela em olha para a SAD como um órgão do clube" - Eduardo Guimarães, presidente do Vizela
"Isto é como um casamento, fomos à procura de um parceiro. Tivemos sorte, é gente boa", acrescentou o dirigente, com a garantia de que o clube "procurou que todas as situações ficassem devidamente esclarecidas" no contrato. E se surgir algo imprevisto? "Bom senso. É assim que se ultrapassa." Uma fotografia de Gerard Piqué a autografar uma camisola do Vizela, em 2018, tornou-se viral. O central do Barcelona é amigo e parceiro de Edmund Chu noutros projetos desportivos, como a Kosmos, que assegurou os direitos de organização da Taça Davis (ténis). Sem registo de incumprimentos e com uma melhoria notória nas infraestruturas, Chu recolhe simpatia e gratidão entre os adeptos do Vizela.
Em Famalicão, também se percebeu que era preciso algo de novo para dar o impulso que faltava. "Somos nós os responsáveis pela vinda da Quantum. Percebemos que para fazermos um caminho que nos levasse à grandeza que tanto queríamos, seria muito difícil fazermos isso sozinhos. Em assembleia geral, mais de 90% dos sócios disseram "sim senhor, vamos encontrar um parceiro que faça o caminho connosco", sublinhou Jorge Silva, presidente do Famalicão, perentório a expor as diferenças de este para outros projetos que acabaram na ruína: "Com todo o respeito por todas as instituições, o que nos move é um espírito de missão e de serviço." Tal como Edmund em Vizela, Idan, que faz parte da estrutura acionista do Atlético de Madrid, também investiu em infraestruturas, sem esquecer os recursos humanos, com a aposta em profissionais de áreas como a nutrição e a comunicação.
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OUTRAS SAD QUE VIRARAM PROBLEMA
Atlético CP
Em 2013, o Atlético subiu à II Liga e constituiu uma SAD em que 70% do capital pertencia a Eric Mao. As suspeitas da UEFA de que este empresário chinês estava envolvido em manipulação de resultados e fraudes de apostas foram reforçadas por documentos do Football Leaks. O Atlético caiu sucessivamente até aos distritais e a SAD foi declarada insolvente em 2018. Os investidores desapareceram sem deixar rasto.
AD Oliveirense
Entre 2017 e 2019, a SAD da AD Oliveirense passou por três donos: Ismail Uzun, Israel Oliveira e Sebastian Diericx. Acumularam-se dívidas e decisões insólitas, como a de dispensar o treinador e 80% do plantel no início de 2018/19, aquando da passagem do primeiro para o segundo investidor. A insolvência deu-se fevereiro passado, com os jogadores a ficarem desempregados, num cenário dramático para os estrangeiros, que precisaram de ajuda para se alimentarem e terem água quente.
SC Freamunde
O desastre da gestão da SAD do Freamunde, atualmente nos distritais do Porto, culminou numa operação do SEF, que em 2019 encontrou dez jogadores em situação ilegal. Carlos Carvalho, ex-presidente da SAD, prometeu-lhes contratos, mas os jogadores acabaram a viver da solidariedade do clube e alguns deles, com menos de 20 anos, dormiam em quartos improvisados debaixo da bancada do estádio. De Carlos Carvalho perdeu-se o rasto.
SC Beira-Mar
"Eu tenho de me controlar para não dizer que quero ser o número um do país." Foi assim que o iraniano Majid Pishyar assinalou a criação da SAD do Beira-Mar, em 2011. Quatro anos depois, o clube caiu diretamente da II Liga para a distrital de Aveiro. Pelo meio, Pishyar teve trocas de poder e de insultos com o italiano Omar Scafuro, acusado pelo Ministério Público de abuso de confiança fiscal. O Tribunal de Aveiro declarou que a insolvência da SAD foi culposa e condenou ambos.
CD Fátima
À beira do abismo em 2013, a salvação do Fátima chegou pelo empresário muçulmano Abdulmouti Akaaki, que investiu na criação de uma SAD. A estabilidade do projeto, aliada à curiosidade religiosa (o presidente do clube é padre católico) chegou a ser notícia. Porém, no início desta época, o Grupo Lleon, de Noel Gomes, tornou-se acionista maioritário e, menos de um ano e vários salários em atraso depois, a SAD foi considerada insolvente pelo Tribunal de Santarém.
TRÊS QUESTÕES A PAULO MARIZ ROZEIRA
(Diretor jurídico da Liga)
1 - Este fenómeno preocupa a Liga?
-Sim, muitíssimo. As competições organizadas pela Liga têm feito um percurso no sentido da crescente profissionalização e de incremento da exigência aos clubes. Inclusivamente em matéria de cumprimento salarial perante jogadores, treinadores e, mais recentemente, perante os demais trabalhadores. Além do objetivo imediato de promoção da legalidade, há um inegável interesse egoístico da Liga neste tipo de controlos: apenas com sociedades desportivas cumpridoras - e o incumprimento é manifestamente a exceção - temos competições equilibradas, justas e interessantes para adeptos e patrocinadores.
"Teste de idoneidade seria julgado ilegal"
2 - O que faz a Liga para tentar evitar situações destas?
-A Liga tem feito o que a lei lhe permite. Além dos controlos referidos, o processo de candidatura exige - e já exigia muito antes de a lei consagrar obrigações de transparência e identificação do beneficiário efetivo - a divulgação da estrutura acionista, com o elenco das participações qualificadas e, bem assim, toda a cadeia de detenção destas até à identificação de uma pessoa física. Apenas dessa forma conseguimos identificar eventuais participações em mais do que uma sociedade desportiva e prevenir os conflitos de interesse que daí possam advir.
3 - É necessária uma reformulação da lei que rege as sociedades desportivas?
-A Direção Executiva da Liga encetou uma discussão com a Secretaria de Estado da Juventude e Desporto sobre a revisão desse regime. A lei tem sete anos, refletindo uma realidade pretérita, e a única alteração que lhe foi introduzida, em 2017, serviu, exatamente, para consagrar certos deveres de transparência, mas não de controlo de idoneidade de investidores. À míngua de habilitação legal expressa, não é a Liga quem pode determinar se determinada pessoa reúne, ou não, os requisitos para adquirir uma participação numa entidade que, afinal, à luz da lei portuguesa, não é senão uma sociedade comercial de tipo especial (desportivo). O nosso Grupo de Trabalho Jurídico ponderou a introdução de um mecanismo do tipo do "fit and proper person test" implementado na Premier League, pretensão que esbarrou na minudência de ser julgado ilegal no nosso regime atual.