"Houve quem fizesse a política do medo, nos cafés, nas redes sociais. E resultou"
Eleito presidente do Vitória em 31 de março de 2012, Júlio Mendes está a poucos dias de terminar a ligação ao clube. Nesta entrevista toca nos temas fulcrais
Corpo do artigo
Sem querer envergar a pele de mártir, Júlio Mendes entende que a saída por demissão é a melhor forma de devolver a união e a estabilidade ao Vitória. E diz que o trabalho dos últimos sete anos fala por si
Pimenta Machado, Vítor Magalhães, Emílio Macedo da Silva e Júlio Mendes. Os últimos quatro presidentes demitiram-se e saíram a meio de mandatos. O que nos diz isto?
É uma coincidência. Os motivos foram diferentes. A minha saída não tem a nada a ver com as motivações desses presidentes.
Mas isto não nos diz que o Vitória é um clube difícil?
-Diz-nos que é um clube muito exigente, de facto, o quarto maior em dimensão social, com uma massa associativa heterogénea, plural, o que coloca maior dificuldade na gestão e liderança.
11135902
Qual foi, afinal, a principal causa para ter apresentado a demissão: a contestação ou o impasse com Mário Ferreira e a perspetiva de não haver um investimento adequado?
A contestação foi a ponta do icebergue, tinha a perceção clara que havia um movimento subterrâneo de criar uma agenda, de criar instabilidade, não pelos resultados desportivos e financeiros, mas por se querer criar uma sucessão governativa. Fomos lúcidos e percebemos que nunca teríamos paz. Entendemos que esta era uma oportunidade para passar uma mensagem muito clara, a de estar na hora de crescer em termos de matriz identitária e de não permitir que isto volte a acontecer aos meus sucessores. Espero que não aconteça a Miguel Pinto Lisboa e desejo que não passe pelo mesmo que eu, porque o clube precisa de estabilidade governativa, de maneira a que as pessoas aprendam e ganhem experiência em vez de entrarem e saírem. Sempre que isso acontece voltamos ao início. Saio de consciência tranquila, porque quis e porque entendi que era o melhor para o clube. Foi o melhor que podíamos ter feito para dar estabilidade ao clube.
"Havia agenda para criar instabilidade, não pelos resultados desportivos e financeiros, mas tendo em vista a sucessão"
Quem eram esses instigadores e causadores de movimentos subterrâneos de que fala?
Vou abster-me de falar disso, porque os vitorianos perceberam tudo o que estava em causa e quais eram os interesses que estavam em jogo. Isso resultou claro na campanha eleitoral.
Por que é que a relação com o investidor Mário Ferreira não deu melhores frutos?
Na minha perspetiva, Mário Ferreira é um acionista, por acaso o maior acionista, e não um investidor. Podia haver um conjunto de acionistas, que juntos formassem a maioria do capital. A minha relação pessoal com Mário Ferreira sempre foi muito cordial, nem melhor nem pior. Institucionalmente também.
Não houve incompatibilidade?
Nenhuma. Fiz sempre questão que se percebesse o seguinte: os acionistas votam em assembleias de acionistas para eleger e demitir Conselhos de Administração e para aprovar contas, não para gerirem. Gerir compete ao Conselho de Administração e ao seu presidente. Quando os acionistas não concordam com a gestão, têm de convocar um Conselho de Administração e destituí-lo. As regras são claras. Nunca permiti, e espero que nunca o permitam, que um acionista, maioritário ou não, influencie a gestão do Conselho de Administração.
"Nunca permiti, e espero que nunca o permitam, que um acionista, maioritário ou não, influencie a gestão do Conselho de Administração"
Mário Ferreira exigiu entrar na SAD e ter maior controlo?
Nunca exigiu, eu é que o convidei várias vezes para fazer parte do Conselho de Administração, algo que ele nunca quis. Ele tinha uma pessoa indicada por ele, o doutor Luís Teixeira, que a partir do momento em que passou a fazer parte do Conselho de Administração passou a estar investido de um conjunto de regras, obrigações e comportamentos adequados.
Mário Ferreira enviou uma carta para a SAD a dizer que investia se fosse alterado o modelo de governação?
Sim. Disse que gostava de poder investir no negócio, mas punha como condição alterar o modelo de governação e que o modelo da SAD e os estatutos se aproximassem mais de uma sociedade comercial normal, sem os constrangimentos específicos protegidos nos estatutos da SAD. Isso foi pouco antes da nossa demissão. Respondemos que estaríamos disponíveis para o ouvir, para que nos dissesse o que queria investir, em que condições, que modelo queria... Com o ato eleitoral já não fazia sentido ele responder.
"Percebi que havia uma concertação para dificultar a nossa gestão"
Não era expectável o investidor colocar mais dinheiro na SAD?
Ninguém colocou essa exigência a Mário Ferreira. Um acionista compra ações para poder influenciar na escolha de um Conselho de Administração e, por via da gestão, ter resultados financeiros todos os anos.
Na assembleia geral de 2018, quando não se aprovou a mudança de estatutos, percebeu que isso podia ditar a sua saída?
Percebi que havia uma concertação para dificultar a nossa gestão. Fizemos uma proposta bondosa, de prescindir de um conjunto de poderes e autorizar alterações aos estatutos da SAD. A nossa proposta era passar esses poderes para todos os sócios para que qualquer alteração fosse decidida em assembleia geral do clube e não da SAD.
Era a moeda de troca para permitir a entrada de investidores?
Não era moeda de troca, era para depois fazer a proposta para que os sócios decidissem o que queriam.
Não ponderou demitir-se nessa altura?
Não, o timing foi o mais acertado. Terminámos a época e não pusemos em causa o planeado. Os timings nunca são bons para mudanças, mas é melhor que aconteçam no fim da época do que a meio. Estivemos um mês a trabalhar nos reforços e os nossos sucessores vão ter outro mês. Há duas ou três posições para reforçar.
Continua a achar que o Vitória necessita de um investimento externo grande para crescer desportivamente?
Necessitará em função do que os sócios quiserem e eles são o maior ativo do clube. Se se quiser apostar forte no crescimento desportivo, é preciso mais dinheiro.
Disse que o Vitória precisava de investimento para lutar por títulos...
É o que defendo, sem que tal se traduza em perda de identidade do clube. É preciso fazer as coisas com equilíbrio; era o que queria propor aos sócios e, infelizmente, não me deram a oportunidade de o fazer. Defendia que devíamos abrir as portas à possibilidade de um financiamento do futebol, sempre a troco de alguma capacidade para quem quisesse investir de poder participar na gestão. Mas isso não significava perda de identidade ou de controlo, isso nunca esteve em cima da mesa. Houve quem fizesse a política do medo, nos cafés e nas redes sociais, e resultou. Havia uma proposta que queria apresentar e que podia ser alterada, refinada e discutida, mas não foi isso que aconteceu.