O futebol à porta fechada será um grande desafio para os produtores e realizadores das transmissões televisivas. Vai perder-se parte da emoção acrescentada pelos adeptos nas bancadas, mas, em contrapartida, as imagens vão ganhar realismo, sobretudo através dos sons em direto do que se vai passar no relvado...
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O futebol vai voltar, agora em exclusivo na televisão. Os adeptos vão desaparecer dos estádios por tempo indeterminado e parte do jogo, aquela dos gritos que fogem constantemente das bancadas na direção dos relvados, também vai entrar de quarentena.
No meio desta pandemia, que nos rouba tempo de vida, sobram várias questões: afinal, que espetáculo televisivo iremos ter nos próximos meses? E, sem a emoção que costuma rebentar nas bancadas, que tipo de transmissão passará a ser oferecida?
Segundo os especialistas, os telespetadores podem esperar um produto mais frio e realista, mais focado no jogo do que propriamente naquilo que o rodeia, mas também com uma nova atração, as vozes, em direto e sem filtros, dos mais variados intervenientes. "Com os estádios vazios vai ouvir-se tudo", começou por contar Joan Figueroa, o realizador de maior currículo na Sport TV. "Como não vai haver ruído no estádio, vai dar para perceber tudo o que é dito pelos jogadores e treinadores. É caso para dizer que, a partir de agora, eles vão ter de passar a ter cuidado com a linguagem (risos). Ao contrário do que as pessoas podem pensar, o som ambiente até vai ganhar com a ausência de adeptos. Vai passar a ouvir-se os jogadores a bater na bola, a correrem... Esses sons, que antes eram abafados pelo público, vão dar ainda mais realismo e valor à imagem", prosseguiu.
A opinião é, em parte, partilhada por Ricardo Espírito Santo, realizador da RTP que costuma trazer até às nossas casas os jogos da Seleção Nacional e da final da Taça de Portugal, entre outros. "Sempre gostei de explorar a parte emocional do jogo através do público. Mas, agora, com os estádios vazios, os telespetadores vão conseguir ouvir tudo o que se passa no campo. E isto é para o bem e para o mal. Também se vão ouvir as asneiras... Por exemplo, na final da Taça de Portugal, entre o Benfica e o FC Porto, vai-se ouvir a irritabilidade do treinador que estiver a perder...", brincou.
Objetivo "impossível": microfones nos bancos
A possibilidade de colocação de microfones nos treinadores, por exemplo, traria uma "riqueza ainda maior" à transmissão televisiva, mas essa é, para Ricardo Espírito Santo, uma medida quase impossível de colocar em prática no curto prazo. "Já tentei isso há muitos anos, mas está muita coisa em jogo. Isto não é um juízo de valor, mas há tipos irascíveis que dizem muitas asneiras. E, neste caso, faltam poucas jornadas para o final do campeonato. Vão ser ditas coisas pouco simpáticas nos bancos", acrescentou, antes de dar um exemplo vivido na primeira pessoa. "No início das transmissões dos jogos do futsal na RTP, havia um microfone colocado nos treinadores, mas isso acabou por ser proibido pouco tempo depois. Foram apresentadas várias desculpas, entre elas a de que havia pessoas a ouvir os comentários na televisão e a passar as táticas aos adversários". Apesar disso, Ricardo Espírito Santo não tem dúvidas de que é preciso começar a mudar mentalidades e a pensar-se o negócio do futebol, pelo menos o televisivo, em outros moldes. "Há o caso do futebol americano, em que se ouve o que os treinadores dizem, e até no râguebi, em que os árbitros têm um microfone para que as pessoas compreendam as suas decisões. Isso tornaria a transmissão bem mais interessante", recordou.
Produtores e realizadores dos jogos de futebol ainda não foram informados sobre os meios que vão poder utilizar no resto do campeonato
Novos ângulos e a emoção do direto
Sem adeptos nas bancadas, Joan Figueroa acredita que se pode perder apenas "uma pequena parte da emoção" de um jogo, mas que, quanto ao resto, o espetáculo televisivo terá o "mesmo interesse e valor" de sempre. "Provavelmente, esta situação até poderá afetar mais os jogadores e a intensidade do jogo do que a própria transmissão. Nós, os realizadores, podemos mudar os ângulos da imagem para que as bancadas não sejam visíveis, trabalhar novos planos de realização, mas o jogo em si, a dinâmica e até as repetições, vão manter-se iguais. Por isso, o interesse do telespetador vai ser o mesmo. Em suma, as pessoas vão focar-se mais no jogo e menos nos assuntos laterais. Vai haver uma maior atenção para os pormenores, as táticas e as jogadas", explicou.
Nenhum dos dois realizadores foi ainda informado sobre aquilo que será permitido fazer, ou não, no que resta de temporada, ainda que abundem as ideias para tornar o produto mais interessante. "Provavelmente, vamos conseguir colocar câmaras em locais que, até agora, não eram possíveis, pois subtraíam a visão do jogo dos adeptos que se encontravam nas bancadas. Apesar disso, o princípio será sempre o mesmo: explorar ao máximo as emoções, ainda que mais através do direto. Quando houver um golo, e como não há adeptos, vamos focar mais na festa dos jogadores que marcaram e na tristeza dos jogadores que sofreram", acrescentou. "Durante as transmissões, quantas vezes entravam planos de adeptos? Muitas. Agora vamos ter de encontrar novas alternativas do ponto de vista da emoção. E isso, garanto, vai dar um gozo enorme", concluiu.
Jogos em sinal aberto ainda em discussão
Os pagamentos dos direitos televisivos aos clubes continuam suspensos pela operadoras, sendo automaticamente retomados no dia em que o futebol regressar aos ecrãs. Neste momento, a discussão centra-se na possibilidade de os jogos que falta disputar serem transmitidos em sinal aberto, ainda que Alexandre Fonseca, CEO da Altice, tenha alertado, no final de abril, para o facto de "nada indicar que esse cenário venha a ser aplicado em Portugal". No entanto, na última quinta-feira, João Paulo Rebelo, secretário de Estado do Desporto, admitiu a possibilidade de vir a discutir com as operadoras, a FPF e a Liga a possibilidades de as últimas 10 jornadas serem disputadas em sinal aberto. "Sabemos que os cafés e associações são, para lá dos estádios, locais de romaria, com grupos de dezenas de pessoas a concentrar-se, o que não é desejável", justificou.