VELUDO AZUL - A crónica de estreia de Miguel Guedes n'O JOGO, rigorosamente a não perder. E, a partir de hoje, todos os domingos.
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Por sortilégio ou encanto dos deuses do futebol, escrevo a minha primeira crónica na antecâmara da coroação de um novo campeão nacional.
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Não há dados adquiridos a três jornadas do fim, mas a matemática é uma ciência rebelde para os que se apegam às possibilidades anormais de falhanço: habitualmente, a matemática dá o braço à probabilidade, esquece a possibilidade e concretiza-se. "Enquanto for matematicamente possível" é das frases mais deprimentes da escola falada do futebol. Essa frase, no entanto, é tantas vezes aquilo que faz o adepto sonhar que, para além dos números, ainda pode haver um acto divino que pegue na sua equipa, dê cabo da outra, fortaleça os oráculos e, zás-trás, vire o jogo ao contrário. Aí sim, seria a matemática dos deuses e já se jogaria futebol com magia. O problema é que os três grandes mágicos, a três jornadas do fim, já atiraram todas as cartas para a mesa. Baralhar para dar de novo, só para o ano. Na prática, os "três grandes" estão todos à espera do seu milagre colectivo.
O FC Porto, mais do que competente na Liga dos Campeões, foi sempre algo trôpego a nível interno, sendo arrumado cirurgicamente para canto, em fevereiro, pelo ciclo dos 4 jogos dos 3 B´s (Belenenses/Braga/Braga/Boavista). Micro-cirurgia mental a um colectivo que, naquele momento, já manifestava poucas pernas para andar, fruto do desgaste europeu e do envolvimento sério em todas as competições. Foi um "cocktail" explosivo, servido com ou sem preparação, mas com grande dose de eficácia. Quando o FC Porto se conseguiu levantar, também por ver o Sporting a perder pontos a um ritmo leonino, apareceu o escândalo de Moreira de Cónegos a restaurar a ordem imperial. Na Luz, o FC Porto tentou mais e melhor, fez o que lhe competia. E se amanhã ganhar ao Farense, espera por um milagre em estreia absoluta. Este ano, a derrota do Sporting é um objecto voador não identificado e, como tal, escapa à ciência dos números.
Este ano, a derrota do Sporting é um objecto voador não identificado e, como tal, escapa à ciência dos números
Enquanto o Sporting espera por um milagre colectivo - ou não fosse milagroso ganhar o título nacional depois de 19 anos, com uma equipa que combina a juventude, inexperiência e crença do seu treinador com uma inexcedível competência defensiva em tempo de pandemia -, o Benfica dos 100 milhões de investimento e do jogo a triplicar, espera o milagre de ver um ultra-Farense a fazer escorregar um eventual desinspirado FC Porto, para depois - na Madeira - vencer o já quase soterrado Nacional.
O drama de FC Porto e Benfica é que ambos já deram os seus ternos e jogaram os seus jokers: se o FC Porto ganhar, o Benfica passa a cumprir calendário e, mesmo que um super-Boavista derrote o Sporting em Alvalade, as águias entram em modo de preparação para a final do Jamor, estendendo a passadeira ao rival da segunda circular na penúltima jornada da época. O contexto vai para além das alianças. Ao Benfica, por milagre, só resta ver os dragões perder pontos e aproveitar as facilidades que um Sporting, já campeão, lhe dará. É esta "coligação de interesses" que impede a matemática de se transformar numa força esotérica. E é por isso que cada um dos "três grandes" espera o seu próprio milagre, mesmo sabendo que os deuses da bola só têm espaço para um.
(Miguel Guedes opta por escrever os seus textos na ortografia antiga)