Mítico Ewerton, lendário guarda-redes do Marítimo, percorre a sua carreira e um trajeto só com um rim em Portugal. Jogos marcantes nos Barreiros, em Turim, no Jamor e também no Algarve
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Da Cachoeira do Sul para o Marítimo, herói maior na baliza dos insulares durante uma dezena de anos, patrocinando sempre boas campanhas e oferecendo imagem adulta, uma experiência notável entre os postes de quem tinha sido indiscutível anos a fio na Portuguesa e chegado com todos os recursos limados nos seus 29 anos. Uma barba proeminente, reações seguras e uma consciência de todos os perigos, sem procurar aparato nas intervenções. Ewerton era imagem de sobriedade, construindo uma relação fortíssima com o clube.
“Na verdade, eu já tinha estado na Madeira antes de ser contratado pelo Marítimo. No início da época 1982/83, a Portuguesa foi convidada para disputar um torneio Autonomia e tivemos a oportunidade de defrontar o Marítimo e Nacional. Ficámos uma semana e deu para conhecer todas as belezas da ilha e sentir o envolvimento dos adeptos do Marítimo. Em 1987 surge o convite e não pensei duas vezes, o acerto foi rápido e rumei à Madeira para ficar 12 anos ligado ao Marítimo”, explica Ewerton, hoje com 66 anos.
“Encontrei um clube ainda muito preso a lutas pela permanência, o estatuto de clube europeu assentou na chegada do Autuori. A partir daí é que se montou um grupo de jogadores de excelente qualidade que vieram a consolidar o Marítimo”. “Não consigo destacar individualidades, seria injusto para os outros. Houve uma combinação de talento individual de vários atletas com o entrosamento do grupo no geral. E um comando notável de Autuori”, revela Ewerton, discorrendo tudo o que sentiu, aquilo que o moveu, e ainda o que superou pouco antes de aterrar na Madeira. “Cheguei no auge da minha forma técnica e com uma grande ambição de vencer na Europa e num país onde o futebol tinha características diferentes do que era praticado no Brasil. Ainda a jogar pela Portuguesa tive uma grave lesão que resultou na retirada de um rim. Essa situação causou transtornos na operação, pois o clube teve de realizar exames e eu tive de assinar um termo de responsabilidade para que a Federação me aceitasse como jogador do Marítimo”, recua.
Nunca mais foi assolado por sustos. “Nunca houve qualquer problema, muita gente vive tranquilamente só com um rim. Joguei cerca de dez anos só com um rim. Prejudicou foi muito a minha carreira no Brasil, estava no auge e perto da seleção. Tive de recuperar a credibilidade em Portugal”, elucida Ewerton, que nunca mudou de cores, tal e qual é sair do Fluminense para o Estrela, como sair da Portuguesa para o Marítimo.
“Eram as mesmas cores e emblemas muito ligados às origens de Portugal. Foram 20 anos de paixão verde e vermelha”, atesta o brasileiro, que chegou a pairar como opção para o escrete, ainda no Brasil. Seguiu-se o sonho europeu. “Fiz mais de 250 jogos pelo Marítimo, todos tiveram a sua importância e história, vi a equipa ganhar dimensão no País. Entre os jogos que não saem da memória destaco a última jornada de 90/91, contra o Farense, em Faro, onde só a vitória nos garantiria a permanência. Já o Farense, vencendo, alcançava lugar nas competições europeias. A vitória foi nossa, por 2-1, deu para segurar a permanência na 1ª Divisão e foi, assim, que se iniciou o processo e a caminhada que transformou o Marítimo em clube com estatuto europeu. Recordo que fomos recebidos pelos adeptos como se tivéssemos sido campeões”, desvenda o antigo guarda-redes, assaltando duelos ilustres e até icónicos para qualquer maritimista.
“O jogo de Turim para a Taça UEFA foi algo inesquecível para o clube e toda a região. E conseguimos dar luta à Juventus”, explica, prosseguindo com o seu leque de jogos prediletos. “Depois é a meia-final da Taça de Portugal contra o FC Porto, conseguimos vencer e garantir apuramento para o Jamor. E, por fim, é falar da própria final da Taça diante do Sporting onde, individualmente, fiz a melhor atuação da carreira mas não foi suficiente”, frisa.
O dom de Paulo Autuori e as lembranças de Tite
Ewerton tem para si como fundamental a influência e mestria de Paulo Autuori no que foi alcançado no Marítimo. O discurso arejado, a psicologia muito empregue para mobilizar o jogador conquistaram um balneário. “Toda a gente teve muita importância, mas Autuori sempre dizia que a individualidade, do ponto de vista técnico, só iria aparecer se o coletivo fosse forte. Todo o trabalho dele era baseado na valorização do grupo. Fez do Marítimo uma equipa vencedora”, evidencia.
Além de Autuori, fala de Tite, seu colega na Portuguesa. “Era um médio de boa técnica, prejudicado pelas lesões. Já exibia conhecimentos táticos e conversava bastante sobre os treinos, sempre participativo e ativo, auxiliando o treinador.”
Massagista entra mas sai... lesionado
O guarda-redes viveu anos fortíssimos do FC Porto mas também lidou com plantéis de altíssimo gabarito de Benfica e Sporting. E os homens que sempre mais temeu até se vestiam como leões. “Ao longo dessa década de serviço no Marítimo, apanhei grandes avançados nos três grandes e trabalhosos. Mas destaco Iordanov e Cadete, por coincidência ambos do Sporting. Cadete deve ter sido o rival contra quem mais vezes joguei e com Iordanov mantive um duelo épico na Taça de Portugal. Fiz grandes defesas mas acabei por levar a pior”, conta, também puxando pela memória das vezes que namorou a possibilidade de deixar o Marítimo. “Na minha primeira época no clube deu-se o rumor do FC Porto ter manifestado interesse na minha contratação mas foi algo que nunca evoluiu. Após a final da Taça de Portugal, houve interesse concreto do Sporting mas as negociações estagnaram e acabei por encerrar a carreira e assumir funções de treinador de guarda-redes”, recorta Ewerton, aceitando recuar às provas de fogo em cada treino que constituíam os livres de Heitor.
“Treinava diariamente os livres e, na verdade, o índice de aproveitamento era enorme, em dez nove iam na baliza, quatro ou cinco entravam”, lembra, falando ainda dos avançados que deliciavam os Barreiros. “O Alex e o Edmilson fizeram história mas destaco ainda o Jorge Andrade, o Paulo Alves e todos os outros que ajudaram no acesso à UEFA”, trava a fita no momento mais grandioso, saltando para o mais gracioso e surreal.
“Os massagistas eram os que alegravam o grupo com piadas e atitudes engraçadas. Lembro o João Júlia no jogo na Suíça contra o Aarau. Um jogador lesionou-se, ele entrou em alta velocidade mas de repente começou a mancar e caiu. Uma confusão enorme, entrou o nosso médico e o suíço e viram que ele tinha sofrido uma fratura de esforço. Teve de sair de maca e o jogador lesionado ficou em campo sem ser atendido. Foi algo trágico-cómico, acabou tudo bem, porque seguimos em frente”, revelou.
Chega de brigas, é hora de união
O peso de ver o Marítimo hoje afundado em contas para subir, despromovido como destino cruel e castigo severo de anos de mau planeamento, não passam ao lado de Ewerton, que nunca deixa de estar sintonizado e focado no que faz o emblema dos Barreiros, que tem conhecido também períodos de deriva e incerteza diretiva.
“A situação atual causa tristeza mas estou certo que é um contexto passageiro e na próxima época todos veremos o Marítimo a ocupar o seu lugar na 1ª Divisão”, defende o antigo guarda-redes, atento ao quarto lugar vigente, ainda fora desse objetivo.
“A mensagem que gostaria de passar é que já não é mais hora de divisões, de acusações ou brigas políticas. A hora tem de ser de união entre todos e com o exclusivo objetivo de deixar o Marítimo no mais alto escalão, onde merece estar. O Carlos Pereira foi quem me levou para Portugal, sou imensamente grato pelo que ele me proporcionou a partir da minha chegada ao Marítimo. E o Rui Fontes foi o dirigente que nos comandou na caminhada para conquista dos lugares europeus”, realça, procurando unificar a massa adepta dos insulares em fase de turbulência nos Barreiros.