Quando acabar de ler este texto, a inflação no futebol já galopou mais um pouco. Nos últimos 30 anos, tudo se multiplicou, desde as transmissões televisivas até ao dinheiro que circula, passando pelos minutos que os futebolistas suportam nas pernas. A comparação ganha pertinência numa altura em que Gianni Infantino e Aleksander Ceferin, em clima de guerra fria, batalham por nova revolução.
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Se dos anos 80 para a atualidade quase nada está igual no futebol, não deve ser preciso esperar mais uma década até que se sintam os efeitos das mudanças radicais que a FIFA e a UEFA preparam.
De nove jogos do campeonato televisionados por ano para centenas de transmissões de diversas competições mundiais, de lugares limitados aos campeões nacionais na maior prova da UEFA até ao "caminho dos campeões" na encruzilhada das eliminatórias, de transferências recorde de 35 milhões de euros para vendas superiores a 200 milhões: da década de 1980 para a atualidade, parece que só o objetivo do futebol continua igual. Mais do que um exercício de memória, a comparação com os anos 80 é uma reflexão interessante num momento em que a UEFA e a FIFA, no meio de uma guerra fria, esgrimam por uma revolução no futebol. Se há 30 anos era tudo tão diferente, pode não ser preciso esperar mais dez para o panorama atual estar virado do avesso.
As competições nacionais estão mais ou menos iguais, mas o contexto internacional é muito diferente, em formato, em número, em importância. Em 1986/87, o FC Porto teve de derrotar cinco adversários para se sagrar campeão europeu, mas todos eles eram vencedores nos seus países. Agora, uma equipa tem, no mínimo, 13 jogos a separá-la da "orelhuda". Vale tanto dinheiro que entrar na corrida ao lado do quarto classificado de Espanha, Inglaterra, Itália e Alemanha é um objetivo fundamental.
Entre as reformas que se preparam nos bastidores, é praticamente certa a criação de uma terceira competição europeia, que não será a restituição da extinta (1999) Taça das Taças, que até era a segunda prova da hierarquia. Os destinatários deverão ser as equipas das ligas menos cotadas, num formato que, com a Liga Europa e Liga dos Campeões (todas com 32 equipas), será semelhante ao da Liga das Nações: promoções, despromoções e lugares reservados para certas equipas. No limite, até se equaciona que estes jogos passem para o fim de semana, em troca com os campeonatos. Ao mesmo tempo, a FIFA quer um Mundial de Clubes com 24 equipas, ainda não se sabe se a cada quatro anos ou anualmente, mas Gianni Infantino ainda batalha por uma Liga das Nações Global, ou seja, o formato europeu alargado ao mundo inteiro e disputado nos anos que antecedem os Mundiais.
Os clubes têm apelado a uma redução dos jogos de seleções, de forma a garantir mais descanso aos jogadores, mas o que se adivinha é um incontornável aumento da carga, que nos anos mais pesados já pode ultrapassar as 60 partidas. Aconteceu isso na época passada a Rui Patrício, entre o Sporting e a Seleção: terminou com 61 e o máximo possível está nos 77. Os exemplos equivalentes dos anos 80 são os de Silvino (Benfica) e Inácio (FC Porto), que fecharam a época 1987/88 com 53 e 51 jogos, respetivamente. Se nessa altura, só por uma vez uma seleção europeia fechou a época com 17 jogos (a Alemanha, finalista do Mundial"82), agora é garantido que um semifinalista de um Mundial chega a julho com 17 ou 18 encontros.
O ciclo competitivo termina em 2021 e o braço de ferro entre FIFA e UEFA vai continuar, com os responsáveis pelas ligas cada vez mais apreensivos, tal como Pedro Proença, presidente da Liga portuguesa, sublinhou na semana passada.
Maior acesso à Champions mas títulos para os mesmos
A transformação da Taça dos Campeões Europeus em Liga dos Campeões abriu a porta a mais equipas para lá dos vencedores das ligas, mas resultou num palmarés monótono. Os anos 80 conheceram oito campeões europeus (Liverpool e Milan bisaram) de seis países diferentes, enquanto cinco equipas venceram as últimas dez Champions, com três títulos consecutivos para o Real Madrid.
O paradigma e o domínio espanhol repetem-se na Taça UEFA/Liga Europa: Sevilha (3) e Atlético (1) estão nas últimas cinco vitórias. Nos anos 80, a taça foi duas vezes para o Gotemburgo, da Suécia, país que vê os seus clubes longe dos grandes palcos. O desequilíbrio nas receitas e o respetivo impacto no mercado (agora livre) ajuda a explicar, mas o formato das provas há 30 anos também era mais propício a surpresas: sempre a eliminar.
Baggio chegou a ser o mais bem pago do mundo, por um valor que hoje é facilmente suportado por muitas equipas: 4,6 milhões de euros/ano
Neymar valeria dez Maradonas
Diego Maradona custou ao Barcelona dez vezes menos do que os catalães receberam em 2017 por Neymar. Talvez não haja exemplo mais demonstrativo da forma como a inflação galopa no futebol, mais do que a maioria do resto da economia. Isso não significa, claro, que contratações como a de Baggio (25 mil milhões de liras, antiga moeda italiana), o mais caro dos anos 80, não fossem uma "loucura" na mesma medida que as atuais, mas hoje o italiano nem entre os 50 mais caros estaria - convém sublinhar que apresentamos os valores atualizados à inflação e não a conversão direta dos valores da altura.
No entanto, para lá dos números, a análise às duas tabelas representa o poderio que os clubes transalpinos tinham nos anos 80 e que só a Juventus mantém. Até o Olympiacos bateu recordes com o médio húngaro Lajos Détári. Koeman, por 13,3 milhões de euros, foi o defesa mais caro da altura, enquanto esse registo pertence atualmente a Virgil van Dijk, por quem o Liverpool pagou 84,5 milhões de euros.
Como é lógico, os salários escalaram e Baggio também rebentou essa escala em 1990, só que agora não levaria para casa mais do que 4,6 milhões de euros: dez vezes abaixo do salário anual de Lionel Messi - ver gráfico no lado esquerdo. Igualmente impensável há 30 anos era que o campeonato chinês tivesse dinheiro suficiente para atrair craques do futebol europeu.