Viaja de Aveiro para o Porto num meio de transporte “mais confortável” e acessível “para os bolsos”. E há mais jogadores do Salgueiros a fazer o mesmo
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Oito horas da manhã. Diogo Valente chega à Estação de Aveiro. Aparece numa das plataformas, tranquilo, de calções, óculos pendurados na t-shirt e de mochila. Seis minutos depois entra no comboio, desta vez acompanhado pela equipa de reportagem de O JOGO. “Por vezes, há quem se admire com o facto de um jogador com o meu passado viajar de comboio. Perguntam se me sinto bem, se ajuda na minha recuperação; até fico um bocadinho perplexo e questiono, qual é o problema?”, conta, pouco depois do Inter Regional sair da cidade onde nasceram os filhos, a Inês Diogo, de 15 anos, que joga basquetebol no Galitos, e o Santiago, médio dos sub-10 do Taboeira.
“Tenho colegas que não imaginam como é engraçado. Sou cliente habitual da CP e alguns revisores reconhecem-me e, por vezes, conversam um pouco. Como já ando por aqui há seis anos, muitos já são meus amigos”, desfia, quando, curiosamente, à passagem por Estarreja, chega “o pica”, como se diz na gíria dos passageiros. Muitas vezes, que não foi o caso nesta viagem, como é “muito distraído”, Diogo Valente perde o passe e, no final do dia, recebe “chamadas da CP a dizer que o cartão foi encontrado no comboio e tenho de o levantar em São Bento ou em Aveiro”. A mochila nunca perdeu. “Por vezes vou ao telemóvel ou a ler. Gosto de livros de desenvolvimento pessoal, de adquirir sabedoria”, assinala, mostrando o “Pensa como um monge”, de Jay Sheltty. O “Quim”, como carinhosamente muitos utentes se referem ao meio de transporte, trava em Ovar. “Quando comecei a viajar de comboio andava em urbanos, parava em todas as estações e quase todos os apeadeiros, pagava 81 euros mensalmente entre Aveiro e o Porto. Agora, com o Passe Ferroviário Verde, são 20 euros por mês e posso andar no Intercidades ou neste, o Inter Regional”, avança, acrescentando, já perto do túnel de Espinho, que quando jogava nos “tigres”, entre 2019 e 2021, “era rápido, uma meia horita”.
Na primeira época no Salgueiros, Diogo viajava de carro com Cícero, Mica e um fisioterapeuta. “Percebemos que, a certa altura da época, era uma viagem cansativa, apanhávamos o trânsito no Freixo, a pressão de cumprir os horários era muita, por isso começámos a testar o comboio na época seguinte. Funcionou muito bem”, garante, quando o comboio atravessa a Ponte de São João, com o sol a brilhar no rio Douro. “Vínhamos tranquilos. Quando há duas temporadas comecei a assumir um bocadinho a liderança do balneário, concluí que para os salários que se praticam neste campeonato, as despesas que muitos jogadores de fora fazem na estrada são avultadas. Em portagens e em gasóleo, faz diferença gastar 200 ou 300 euros. Viajar de comboio é muito mais confortável e barato”, conclui, quando o comboio entra numa das linhas de Campanhã. À sua espera tem cinco companheiros de equipa: Jorge Miguel, que chegara de Famalicão, Pedro Soares, de Penafiel, Zé Oliveira, de Felgueiras, entrado em Caíde de Rei, e Pedro Prazeres, que demora uns 40 minutos de Barcelos ao Porto. No exterior aparece Paulo Lopes, team manager, pronto para os levar na carrinha do clube para o sintético do Complexo Desportivo de Campanhã, com capacidade para 1500 pessoas, na zona do Bairro do Cerco. Saudações cordiais, entrada no balneário e, pouco depois, Domingos Barros, o novo míster, apita para o início do treino. Sensivelmente uma hora e meia depois, vão todos “tomar um duche”.
Diogo Valente reencontra-se connosco no parque de estacionamento. “Uma das máximas do Salgueiros é ‘um dia voltaremos’. As pessoas acreditam que voltará a ser o que foi. Pela ligação que tenho, pelo carinho que as pessoas têm por mim e que eu tenho pelo clube, gostava mesmo de ajudar a reerguê-lo. O primeiro passo é a subida à Liga 3, que ditará o futuro do Salgueiros nos próximos anos. Queria fazer parte dessa história”, declara, antes de apanhar boleia de um colega para Campanhã, já com “dois pãezinhos com fiambre” preparados por Jorginho para comer na viagem. “Agora vou no das 12h45, mas há dias em que gosto de ir ao ginásio para manter a forma, fazer um reforço, e, almoçando por aqui, apanho o comboio das 14h45 para Aveiro”, relata, à despedida.
De mochila às costas com um quilo de pedras
O pai, Jorge Canté, e o irmão, Renato, mais novo cinco anos, também jogaram futebol. Diogo começou aos dez anos no Beira-Mar, passou na formação pelo Feirense e terminou-a no Boavista. Após ser emprestado ao Chaves, em 2003/04, fez duas épocas “fantásticas”. “Começaram a surgir abordagens dos clubes grandes, de Inglaterra e de Espanha”, recorda. Pela Seleção Nacional sub-21, num Portugal-Suíça, no Bessa, fez o passe para Hugo Almeida no jogo que deu o apuramento para a fase final do Euro'2006. “Nessa noite falei com o meu agente e ficou praticamente tudo fechado com o FC Porto. Na semana seguinte foram buscar-me a casa. O meu agente disse-me que íamos ter com o Antero [Henrique] e, numa reunião muito secreta, estava Pinto da Costa, no carro. Foi a primeira vez que estive com uma figura mítica, que não idolatrava, mas por quem tinha uma admiração enorme por tudo o que conquistou no futebol”. “Portista ferrenho quando era menino”, Diogo Valente já foi “como jogador do FC Porto” para o Europeu de sub-21, organizado por Portugal.
Com jogadores como Bruno Alves, Ricardo Quaresma, Lisandro López e o “grande amigo Bosingwa”, conquistou a liga em 2006/07. “Não me senti campeão, não foi o tipo de sucesso que pretendia num clube grande, porque sempre tive o sonho de jogar no FC Porto”, refere o extremo utilizado por Jesualdo apenas em Alvalade, a 22 de outubro de 2006, antes de ser cedido, em janeiro, ao Marítimo.
Seis anos depois, o momento mais alto. Pela Académica, de Pedro Emanuel, ganhou a Taça de Portugal, ao vencer o Sporting, por 1-0, no final, fazendo a assistência, aos quatro minutos, para o golo de Marinho. Na Briosa, sentiu que foi “fundamental numa grande equipa”. “Para a história fica o cruzamento na final da Taça, mas na caminhada até ao Jamor já fora decisivo com assistências e golos. Na quarta eliminatória ganhámos 3-0 ao FC Porto, do Vítor Pereira, com o Hulk, James Rodríguez, Belluschi e João Moutinho. Um dos golos foi meu”, recorda.
Seguiu-se a primeira aventura no estrangeiro, no Cluj, da Roménia, “um clube com muitas condições, mas com uma falta de organização brutal”. “Esta história nunca contei... Na Liga dos Campeões ficámos no grupo do Braga, Galatasaray e Manchester United. Dois dias antes do primeiro jogo, aqui, em Braga, fomos 30 jogadores provar fatos para uma loja de marca. “Amadorismos”, encolhe os ombros. De regresso à Académica encontra Sérgio Conceição. “O melhor treinador que tive, com uma personalidade difícil e exigência ao limite; embirrava muito com o meu peso. Fiquei muitos jogos de fora porque tinha um quilo a mais. Ele achava que fazia a diferença e então disse-me: ‘Mete uma mochila com um quilo de pedras às costas e vê se corres o mesmo’. Foi um dos meus cliques para ser muito mais rigoroso com a alimentação, o descanso, o físico”, descreve.
Miminhos de uma lenda viva
Com 70 anos, Jorginho está perto de chegar aos 50 no clube. As lágrimas caem-lhe quando o autor destas linhas diz a palavra “Salgueiros”, tal como quando os adeptos gritam o nome dele no final dos jogos. “Estou cá para ajudar, estive sempre aqui, gosto de dar o meu apoio no que for preciso, apanhar uma toalha, um cone, preparo o pequeno-almoço para a malta toda”, explica o antigo médio e treinador adjunto, ainda emocionado. “O Diogo toma as suas vitaminas, por vezes telefona-me para arranjar o limãozinho, o gengibre, porque ajudo um senhor numa frutaria e trago essas coisas”. Este ano, explica o jogador, que não gosta de ser visto como um ídolo, toma “um suminho de manhã, ao pequeno-almoço”. “Com o meu liquidificador, meto laranja, gengibre, beterraba e um bocado de limão. O Jorginho é assim, está sempre atento aos detalhes. Muitas vezes esqueço-me do limão, mas agora ele deixa-o no meu cacifo todos os dias”, detalha Diogo Valente sobre a “lenda viva” do Salgueiros.
“É assim com toda a gente. É muito respeitado pelo grande jogador que foi, por toda a carreira que fez no clube, e tem a humildade de perceber que, muitas vezes, há jogadores que tomam um banho rápido para ir trabalhar à tarde e deixa-lhes um pãozinho com fiambre e um sumo”, narra. “Identifica muito as necessidades de cada um, faz esse miminho e deixa as coisas no cacifo sempre pela calada. Essa é também a humildade que caracteriza muito um clube de pessoas simples que nos dão tudo.”
Memórias
Lelé e o joanete do “carcaça”
Hélder Alves é técnico de equipamentos do Salgueiros há 11 anos. “Nasci dentro de Vidal Pinheiro, tinha uns barracos por trás e foi lá que vim ao mundo”, conta o “Lelé”. “Olha o joanete”, grita para Diogo Valente, quando o protagonista desta história dá um chuto na bola num dos exercícios do treino. “Na minha infância atravessava a rua e ia para a porta pedir moedas aos jogadores. O roupeiro Manuel Pedrosa [já falecido], que foi secretário técnico do nosso clube e do Sporting, mandava-me sair do campo, mas o Filipovic dizia: ‘Deixa estar aí o miúdo’. Bom homem, o míster, como o Diogo. Já levo com este ‘carcaça’ há cinco anos”, recorda, no intervalo da tarefa matinal, enquanto fuma um cigarrinho à sombra.
Banana sai do pé esquerdo
A história do “joanete” já é antiga, mas vale a pena relembrar. “Estão sempre a brincar com o meu joanete, mas tenho essa deformidade no pé direito”, explica Diogo Valente. “A ‘banana’ sai do pé esquerdo, é um gesto técnico aperfeiçoado com o treino. É uma das minhas melhores características.”
Carrinha de sete para dez!
A ida, manhã cedo, da estação para o treino foi outrora atribulada. “No primeiro ano, não tínhamos um colega que passasse em Campanhã, um dos roupeiros chegava mais cedo, vinha apanhar a malta com a carrinha do clube e, muitas vezes, os lugares eram insuficientes”, lembra, com um sorriso, Diogo Valente. No veículo que noutras ocasiões transportava também os jogadores estrangeiros que residem na Casa do Salgueiros, em Paranhos, iam “o condutor, dois ao lado, mais uma fila de dois, outros três atrás e ainda três na bagageira, agarrados aos bancos, com os equipamentos”.
Palavra de “Alminha”: um ídolo
Ricardo Santos está na Direção há quatro anos. “É uma oportunidade de ajudar o nosso clube”, atira o “Alminha”, sócio desde 1991. “É a primeira vez que o Diogo está num clube mais de dois anos, encarnou o espírito da alma salgueirista”, diz o diretor de comunicação. “Ninguém lhe aponta um defeito, é muito acarinhado, pela carreira que teve não é de se envaidecer. Percebeu as dificuldades do clube, tenta transmitir valores importantes como a humildade, a raça, o profissionalismo. É mesmo um exemplo”, sublinha.
Árbitros tratam-no pelo nome
Paulo Lopes terminou a carreira em junho, no Leça. O agora team manager do Salgueiros, que entre outras tarefas logísticas vai buscar e levar os jogadores à Estação de Campanhã, conhece Diogo Valente há 20 anos. “Já não se compram Diogos, os adeptos idolatram-no, a alegria dele é contagiante, é o chefe do balneário, o grupo respeita-o, ouve-o muito, os árbitros tratam-no pelo nome, um sinal de estatuto, mas sem nunca se gabar. Com 40 anos, não anda aqui por favor, é mesmo por amor.” O novo treinador do Salgueiros também começou no Leça. “O Diogo é um símbolo, uma inspiração para nós, equipa técnica, e para os companheiros de equipa. Transmite ensinamento, andar de comboio é um bom exemplo do que ele é”, elogia Domingos Barros. “Suporto-me nele também, ajuda-nos no balneário e na construção do plantel. Feliz é o treinador que tem um homem destes ao lado.”