O Benfica vive confortável na liderança e o FC Porto precisa de um triunfo se quiser sonhar com uma hecatombe. Duas forças maiores nascidas em cidades com longos anos de concorrência.
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O grande clássico do futebol português, que atiça Benfica e FC Porto, será vivido um pouco por todo o mundo, à escala dos dois "Portuguese Giants", como são vistos lá fora, mas sempre com um pulsar diferente nas cidades que os viram nascer.
O futebol, como reflexo da sociedade, vem sempre por arrasto e o 252.º clássico que hoje se joga há de mexer tanto como o 500.º, mesmo que as contas do campeonato abram pouco espaço para a imprevisibilidade.
Com dez pontos de vantagem e a oito jornadas do fim, o Benfica senta-se no trono da liderança com um conforto longínquo da angústia que viveu há precisamente 11 meses, quando viu o FC Porto sagrar-se campeão na Luz. O troféu parece encaminhado para a capital e qualquer espécie de milagre que o possa evitar só pode passar por um triunfo dos dragões, que ainda têm o Braga a respirar-lhe no pescoço.
Mas aqueles 90 minutos têm sempre uma vida própria para lá da matemática da tabela. Um "orgulho muito seu", uma fome por "vitórias sem igual", numa rivalidade com epicentro em Lisboa e Porto. Os clubes não se restringem às suas cidades, nem elas se esgotam nos representantes futebolísticos, mas também não há como separar uma coisa da outra. São séculos de história, batalhas políticas e picardias, numa inevitável dicotomia entre a capital e a segunda cidade.
Germano Silva, historiador que conhece a Invicta como a palma das mãos, frisou a O JOGO que a rivalidade "tem mais a ver com o futebol do que com as cidades", numa linha de pensamento semelhante à de muitos filhos de Porto e Lisboa sem a mínima paciência para esta guerrinha. Admirador da "airosa" capital, "uma cidade maravilhosa onde tem amigos", Germano contextualiza as andanças de outros tempos até à atualidade. "Em termos históricos, o Porto teve sempre uma questão com Lisboa, por ser a capital e o centro das decisões. No século XIX, o Porto tinha ascendente sobre Lisboa. Era uma cidade industrial, próspera que produzia riqueza e tinha grandes grupos económicos, bancos, companhias de seguros e três jornais. Se protestava e batia o pé, Lisboa ouvia e acatava", explica o historiador, que lembra um episódio particular no pós-liberalismo: "Uma vez, o Rei Carlos Alberto chamou Fontes Pereira de Melo e disse-lhe "olha que a Praça Nova já está a mexer. Manda cair o governo antes que venha uma bernarda". Onde hoje é a Praça da Liberdade, juntavam-se políticos, comerciantes e jornalistas. Era nos cafés de lá com as suas tertúlias que se "conspirava"."
Tudo mudou entretanto. "O Porto perdeu a influência. Em termos políticos, há mais investimento em Lisboa, mais fundos, subsídios para atividades culturais. Está lá o poder, é Lisboa que decide", acrescenta Germano Silva. No centralismo de que tanto se fala, não é o Porto, no entanto, quem mais sofre, que o digam as cidades do interior, mas a Invicta fez sempre as coisas à sua maneira. "Os fidalgos estavam proibidos de viver no Porto, não podiam estar mais do que três dias. Eram ociosos, não faziam nada e a cidade era de gente de trabalho", explica.
Já quando Afonso III quis deslocar as cortes de Coimbra, percebeu que "no Porto quem mandava era o bispo", por isso instalou a capital em Lisboa, cidade grande e com características muito apetecíveis para o comércio e expansão marítimos. Ao longo dos séculos, muita gente lhe seguiu os passos. "Quando Fernando Medina foi proposto para autarca de Lisboa, disse a António Costa que era do Porto. E este disse-lhe que muitas pessoas de Lisboa não eram de lá", contou Germano, numa posição agregadora que também se vê a norte: "Imensa gente foi dos arredores, do Minho e de Trás-os-Montes trabalhar para o Porto."