Uma tendência lúgubre envolve o emblema transmontano, desde o nome do estádio, herdado do local onde, dizem-nos, até ao século XVIII, se aplicava a pena capital, até ao recinto dos escalões de formação - o Campo do Calvário. Eis o Vila Real, o adversário do FC Porto na terceira eliminatória da Taça de Portugal
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Dos distritais para o topo da I Liga vai uma distância que só se pode medir em "ilusão", e isso não falta ao Vila Real, que viu a rotina dos treinos ao fim do dia de trabalho contagiada pela euforia da Taça de Portugal, cujo sorteio remeteu o FC Porto para o Monte da Forca. Uma tendência lúgubre envolve o emblema transmontano, desde o nome do estádio, herdado do local onde, dizem-nos, até ao século XVIII, se aplicava a pena capital, até ao recinto dos escalões de formação - o Campo do Calvário. No entanto, o que marca o contacto com quem dá corpo ao clube que eliminou Torcatense (2-1) e Sanjoanense (2-2 após prolongamento e vitória por 5-4 nos penáltis) é a alegria com que se contam os dias para receber o campeão nacional. Não há como nem porque fugir a ela, explica, com uma grande calma, o treinador Patrick Canto. "É uma tarefa muito, muito grande, um desafio enorme, mas estamos felizes. Para o clube é muito bom, para os jogadores é a realização de um sonho e para mim, claro, como treinador, é um marco. Há muitos treinadores que andam uma vida inteira para conseguir jogar contra uma das melhores equipas do mundo e eu vou ter essa sorte, e logo ao serviço de um clube tão modesto como o Vila Real", exemplifica, ao anoitecer de segunda-feira.
Treinador foi central até aos 40 anos - tem 41. Jogou com Vítor Bruno, adjunto portista. O guarda-redes, 39 anos, já foi de primeira; falta-lhe o dragão no currículo
Caminha-se para as 20h00, o combinado para a equipa fazer o primeiro treino da semana que transferiu o Vila Real para os relvados universitários. Depois de um dia de trabalho, sobra a "ilusão" para juntar à "preparação habitual". Patrick, 41 anos, é professor de Educação Física, um desses casos em que o sacrifício pela profissão desafia o razoável. Dá aulas em Moimenta da Beira, a 70 quilómetros de Vila Real: "Sou dos quadros há 18 anos e não consigo ir para mais perto". O futebol acompanhou-o sempre, na carreira docente. "Sou treinador há um ano. Joguei dos oito aos 40", sorri, enquanto explica como as atividades se conjugaram. Procurava clube na terra onde era colocado. "Ia de mochila às costas" oferecer-se. Foi assim que se vinculou, em tempos, ao Mirandense, para os lados de Coimbra, onde jogou com "Vítor Bruno, adjunto do Sérgio Conceição". Com a Sanjoanense, também encontrou de novo Filipe Moreira, outro ex-companheiro de equipa, e não desdenharia continuar a colecionar reencontros na Taça de Portugal, depois desta eliminatória tão desnivelada. "Temos uma responsabilidade enorme. Sei que o que nós fizermos contra o FC Porto terá alguma repercussão no que é o futebol distrital, o futebol amador português. Nós temos muita qualidade nos jogadores e nos treinadores, ao nível não profissional. Vamos trabalhar o jogo com o FC Porto como todas as semanas. O desafio é tremendo, é uma montanha, mas, vamos com toda a nossa ilusão, a nossa alegria por podermos competir contra uma das melhores equipas do mundo, porque o futebol é isto, onze contra onze e uma bola. Isso é algo mágico e que só o futebol nos pode dar."
"Já me encheram de perguntas: "Como é que vai parar o FC Porto? Já pensou na tática?"... O normal", conta Patrick Canto, num tom paciente
Em Moimenta da Beira, o jogo também já lhe transtornou as aulas. Os miúdos não costumam discutir o Vila Real, mas isto é diferente. "Os meus alunos não sabem, eu sou muito discreto, mas há sempre um ou dois que descobrem e já me desgraçaram a vida (ri). Já me encheram de perguntas: "Como é que vai parar o FC Porto? Já pensou na tática?"... O normal", conta Patrick Canto, num tom paciente, o mesmo que utiliza para transmitir serenidade aos jogadores. Neste contexto, será uma tarefa ainda mais aliciante, porque o desafio é mesmo para ser saboreado como uma ocasião especial. Foi assim desde o sorteio. "Entrou tudo num estado de euforia geral e nós também não podemos fugir disso", diz. Melhor do que isto, só mesmo poder jogar esta partida, admite o central que vive dentro do treinador. "Quem anda no futebol, treinadores, dirigentes, é porque não pode estar lá dentro", garante, com uma saudade boa e decidido a desfrutar do que a Taça de Portugal oferece: "Apesar de tudo o que nos pode vir a acontecer, nós estamos com uma ilusão tremenda."
Um estádio na cave com bifanas da Gina
A filial 114 dos dragões abriu, há onze anos, num espaço peculiar, onde funcionou uma discoteca. Chamava-se Em Obras, e mantém as paredes fiéis à ideia original, com aspeto inacabado; depois, ainda foi Yé-yé, e, quando fechou, aquela área residencial de Vila Real viu ali instalar-se esse pequeno estádio que é a Casa do FC Porto. Quando há jogo grande, na área que o projeto destinou à pista de dança e no espaço adjacente são distribuídas cadeiras e a bancada improvisada enche-se para os transmontanos seguirem a equipa que Sérgio Conceição devolveu à condição de campeã nacional. Ali, percebe-se rapidamente, o futebol é servido com calor humano e nunca faltam os petiscos. "Em todos os jogos, há sempre bifanas, sandes de presunto, pastéis de Chaves - quando o Chaves não empata com o FC Porto, evidentemente", explica João Veiga, o presidente.
A terceira eliminatória da Taça de Portugal deixa divididos os sócios azuis e brancos da cidade. Enquanto esperam que a lei do mais forte resolva tudo naturalmente, apostam num convívio saboroso
Para Gina Sécio, os jogos começam bem mais cedo. É pela mão desta auxiliar de educação, 47 anos sorridentes, que passa o tempero extra de cada partida, as bifanas que ajudam a digerir melhor os caprichos da bola, que já conhece de ouvido. "Quando está tudo calado, sei que foi golo dos outros", ri quem gosta mesmo de saborear o futebol assim, com trabalho à mistura. Será assim nesta eliminatória rara, em que esses outros serão os do Vila Real, o clube que também sente como dela. "Sou pelo FC Porto", avisa, sem medir o politicamente correto no tempero da conversa. Ao redor, os homens são mais reservados. Aqui, nem se discute que há dois amores, no entanto, a versão escolhida para encaixá-los consiste em deixar que a lei do mais forte se imponha. "Pior é quando se perde com o Benfica ou o Sporting", atira o irmão, Carlos Sécio, que esta semana diz não correr o risco de passar pelos "dez minutos" de azia que lhe deixam as derrotas com os rivais. "Ganhe quem ganhar, fico satisfeito", garante. Adérito Clemente, 68 anos, também se declara "pelos dois", mas apresenta-se em tons de azul. "Desde que me conheço sou portista. Hoje, já não é difícil. Na minha aldeia, havia dois portistas e eu. Hoje, é ao contrário", conta, em jeito de vitória de uma vida. Crescer em adeptos é mesmo o desafio das filiais e esta tem tudo para cativar mais uns quantos, seja pela Taça de Portugal ou pelas bifanas. "O campo é pequeno, espero que encha a casa", antecipa António Carvalho, 55 anos rendidos a esta bancada na cave transmontana.
O jogo que faltava para o fim da carreira de Vítor Murta
Há meia dúzia de anos, quando defendeu a baliza do Gil Vicente, então na I Liga, durante 45 minutos, na Luz, Vítor Murta (na foto) chegou a casa e garantiu à esposa que, se a carreira terminasse ali, se sentia "realizado". "Seis anos depois, estamos quase a dizer o mesmo", sorri o inesperado titular do Vila Real, que divide o futebol com o trabalho numa loja de material desportivo local e o treino de guarda-redes do clube, a função que tinha reservada para esta época. Com a lesão do provável titular, Francisco Miranda, os planos mudaram e ei-lo de volta à baliza. "Se calhar, faltava-me este jogo para acabar a carreira", sorri: "As circunstâncias fizeram com que voltasse e agora... não sei, será o meu último jogo ou não, mas, se for, será bonito. Se não, cá estaremos para continuar." O que quer mesmo é ver o Vila Real campeão e no mapa do futebol profissional.