"A coragem de vários atletas tem contribuído para reduzir o estigma em torno da saúde mental"
Abatimentos anímicos no futebol ganharam terrível frequência e os desabafos e pedidos de ajuda têm suscitado intervenção mais apurada de profissionais especializados
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João Lameiras, que tem intervindo na alta competição, emprestando auxílio e acompanhamento a atletas de elite, explica como a saúde mental requer maior atenção e estratégia para mitigar extensão de danos e quebrar linhas de solidão e depressão.
João Lameiras é formado em Psicologia, Doutor em Neurociências pela Universidade das Ilhas Baleares, contando ainda com Especialidade Avançada em Psicologia do Desporto
Lidar com a saúde mental é imperioso pelas exigências e mediatismo devorador do futebol?
—A saúde mental no desporto tornou-se um pilar essencial, não só para otimizar o rendimento, mas também para garantir o bem-estar psicológico e a longevidade das carreiras dos atletas. No futebol, esta necessidade é ainda mais premente devido à conjugação de fatores como a exigência extrema de resultados, o alto nível de competitividade e o mediatismo intenso, que pode ser implacável. Além disso, outros fatores de risco como a ocorrência de lesões, aliada às expectativas muitas vezes irreais colocadas sobre os atletas, reforça uma intervenção sistemática, preventiva e especializada, que promova o desenvolvimento de competências de gestão emocional, estratégias eficazes de adaptação à adversidade e maior robustez psicológica, permitindo aos atletas não só protegerem a sua saúde mental, como também potenciarem a sua performance.
Já se desfizeram todos os tabus?
— Temos dado passos nesse sentido, nos últimos anos assistimos a uma transformação significativa na perceção da saúde mental no desporto. A coragem demonstrada por vários atletas e treinadores ao partilharem abertamente os seus desafios emocionais tem contribuído decisivamente para reduzir o estigma em torno de problemas como a ansiedade ou a depressão. Simultaneamente, clubes e organizações têm assumido papel mais ativo na criação de ambientes onde a saúde mental é valorizada e protegida, promovendo a procura por apoio psicológico especializado. Mas ainda existe um longo caminho a percorrer, uma nova ordem, na implementação de programas de formação e intervenção em saúde mental.
A resolução de problemas do foro mental, mais extremados, exige retirada temporária?
— Não exige. Dispomos de abordagens psicológicas especializadas, integradas e adaptadas especificamente à realidade desportiva, que permitem aos atletas gerir eficazmente as suas dificuldades emocionais sem que tenham de interromper a sua atividade competitiva. Contudo, é crucial que cada situação seja avaliada de forma individualizada por profissionais especializados, para determinar qual a melhor estratégia a seguir.
Que nível de compreensão deve estar implicada pela entidade patronal e que sintomas devem ser tomados em conta, até com atletas que pouco verbalizam angústias?
— É fundamental adotar postura de compreensão, empatia e apoio. É imperioso desenvolver intervenções que promovam o incremento da literacia em saúde mental no contexto desportivo, que fomentem o empoderamento individual e a proatividade na busca de ajuda, a redução do estigma e o aumento da consciencialização do contexto. É essencial consciencializar treinadores a olhar para o atleta enquanto pessoa, não apenas como desportista, sempre que possível estabelecendo relações interpessoais próximas e confiáveis. Nesta relação de maior proximidade, será possível identificar precocemente sintomas e sinais de alerta, mesmo que não sejam expressos diretamente pelo atleta, como alterações persistentes de humor, afastamento dos colegas, quebra repentina de desempenho desportivo, mudanças relevantes nos hábitos alimentares ou de sono e a presença prolongada de desmotivação ou apatia. Aí torna-se imprescindível disponibilizar apoio psicológico especializado ou incentivar o atleta a procurar ajuda profissional.
É um departamento que já devia caber numa equipa técnica?
— A saúde mental é uma dimensão integral do bem-estar e da performance dos atletas de elite e não pode ser separada da saúde física sendo assim, pelo menos fortemente, recomendável a integração de profissionais de saúde mental que acumulem conhecimento especializado nas exigências específicas do contexto desportivo. A intervenção não pode (nem deve) cingir-se à resposta imediata a situações de crise ou problemas psicológicos evidentes, mas assumir uma abordagem preventiva, educacional e continuada. Pretende-se assim potenciar o rendimento desportivo, enquanto se promove o bem-estar pessoal e a saúde mental.
Ação diligente e especializada
João Lameiras reflete sobre mudanças relevantes de comportamento com impacto no rendimento desportivo.
Como evidencia a sua experiência mais pessoal junto de atletas abalados por temas de saúde mental?
—Na minha experiência, as intervenções que produzem melhores resultados são aquelas que integram abordagens individuais, adaptadas à realidade específica e às necessidades de cada atleta, fazendo um alinhamento entre diferentes profissionais, e numa lógica de intervenção interdisciplinar. Algo que ajuda no retorno dos atletas à competição após lesões ou momentos de crise, bem como na prevenção e gestão do burnout.
Como distinguir debilidades temporárias do quadro anímico de um mais difícil de reverter?
—Para distinguir eficazmente dificuldades emocionais pontuais e passageiras de situações mais graves e preocupantes, é fundamental implementar uma monitorização regular e rigorosa da saúde psicológica dos atletas. Esta avaliação contínua permite identificar precocemente mudanças relevantes nos comportamentos, no estado emocional e no desempenho dos atletas. Quando esses sinais se tornam frequentes, persistentes, se agravam de forma significativa, influenciando negativamente o seu bem-estar ou o rendimento desportivo, torna-se necessário interpretar esses indicadores, desencadeando uma intervenção especializada de forma diligente. Adicionalmente, é importante consciencializar os atletas para evitarem a tendência de descurar a continuidade do acompanhamento psicológico quando começam a sentir melhorias.
Como rebater uma crise ditada por afastamento familiar, mediatismo e febre monetária?
— No futebol há fatores de risco como pressões elevadas do sucesso precoce, exposição mediática intensa e o impacto de grandes somas financeiras, sendo a passagem do escalão júnior para sénior uma etapa particularmente desafiante também ao nível psicológico. O desporto é um meio privilegiado para promover o desenvolvimento de competências pessoais e sociais, transferíveis para outros domínios de vida. Para jovens que abandonam precocemente o seu núcleo familiar deve ser assegurado um acompanhamento próximo e contínuo, facilitando a sua adaptação a um ambiente novo, muitas vezes competitivo e imprevisível. Devem também ser implementadas estratégias específicas que visem capacitar os atletas para gerirem situações em que as expectativas não sejam cumpridas ou em que vivenciem períodos de maior fragilidade emocional associada à distância familiar e às exigências elevadas. Este apoio especializado permite não apenas prevenir crises emocionais severas, como também os fortalecer.
Entende uma propensão mais genética ou circunstâncias da vida?
—A evidência científica sugere uma predisposição genética para o desenvolvimento da depressão, mas é a combinação entre aspetos genéticos e condições ambientais (stress prolongado, mudanças significativas de vida, alterações crónicas do sono, isolamento social, uso de substâncias) que habitualmente determina o aparecimento destes problemas. Ambientes extremamente exigentes, como o do desporto de alta competição, tendem a amplificar a interação desses fatores, sendo que tanto a vulnerabilidade biológica do atleta como os desafios específicos do contexto em que se encontra inserido desempenham papéis determinantes no risco acrescido de desenvolver problemas de saúde mental.
“Este recurso não é um gasto”
Do seu trabalho com atletas de elite como Rúben Dias ou Patrícia Mamona, este auxílio vem da procura feita por eles?
—É cada vez mais comum vermos atletas a construírem as suas próprias equipas de suporte fora do clube, onde incluem também o psicólogo como elemento-chave. É importante contrariar que este recurso é um gasto, a componente psicológica pode ser determinante para alcançar a excelência no desporto. Nem todos os atletas que enfrentam dificuldades emocionais conseguem identificar os sinais de alerta. Nesse sentido, os apoios no contexto imediato — como treinadores e staff — podem representar uma linha de apoio decisiva.
Thierry Henry chegou a confessar ter vivido toda a carreira em depressão profunda. Como reflete nesta frase vinda de um jogador de eleição?
—Evidencia uma situação delicada e um recurso a estratégias pouco eficazes ou mesmo prejudiciais para lidar com dificuldades emocionais, evitando procurar ajuda profissional. Entre essas estratégias estão o isolamento social, o consumo de álcool ou outras substâncias, e, cada vez com mais frequência, o envolvimento problemático com o jogo e as apostas desportivas — um flagelo crescente no contexto desportivo. Embora possam proporcionar um alívio momentâneo, estas estratégias agravan os sintomas ao longo do tempo, comprometendo a saúde mental, deteriorando gradualmente o desempenho desportivo e afetando negativamente a qualidade de vida, sobretudo na fase pós-carreira.